quarta-feira, maio 23, 2012

Ismália

                                                      à Evelyne

quando enlouqueço
(porque não tenho tempo pra sonhar)
que se dane a lua no céu
ou no mar:
paro de pensar nas coisas
tomo um duplo sem gelo
e vou assistir TV
a vida fica presa na garganta
e por isso fumo um cigarro barato
na tentativa de sufocá-la:
vendo que não adianta
vou dormir - já meio alterada
porque nada nesse mundo anda fácil
e o futuro é uma pedra no meu salto-alto


terça-feira, maio 22, 2012

Retrato Cotidiano

                                                            A Júlio Saraiva
guardo comigo no bolso da calça
alguns poemas impressos de
Júlio Saraiva
leio-os quando a vida anda pesada demais
e disfarço uma lágrima
ao pensar que tenho que seguir em frente
sabe-se lá porquê

carrego também em pensamento
uns versos tristes de Júlio Saraiva
um colo de mulher que não amei
e um pouco de descrença no futuro
que a gente inventa pra conseguir sobreviver

domingo, maio 20, 2012

canção de ninar para o tempo

Dorme, tempo, dorme
Nino o tempo, nana
Sonha, tempo, calma
Que a vida já vai embora

Dorme, nino o tempo
No meu colo, dorme
Tão pequeno e triste
Digo, embalo a hora

Sonha, tempo, calma
Que amanhã já vem
Dorme, tempo, dorme,
Dorme sem demora

Que a manhã, meu bem
Vem com a esperança
Dos que já não tem
Dorme, tempo, dorme
Nino o tempo
Sonha e vou embora
Tão pequeno e triste
Sonhando também.

sexta-feira, maio 11, 2012

Elegia À Senhora.

Não há em ti, Senhora, senão calmaria e parcimônia.
Tua pele já não guarda a festividade da juventude.
Também não há em teus olhares a curiosidade
E a pressa, características das mais novas, 
Que acabam de descobrir sorrisos incastos
                                          [e veleidades todas.
Tua boca, Senhora, plangente e misericordiosa,
Abriga um afeto não dito, receoso e murmurante.
Te aninhas no cansaço do dia e sonhas, talvez,
Com alguma bobagem romântica. 
Mas teu corpo, Senhora, se me permites dizer-lhe,
Recende amor maduro, talvez já colhido tantas vezes
Nos anos em que caminhaste errante pelas sendas
Da vida, pelas bocas de uns homens, pelo sexo 
Marcado e o prazer. 
Quisera, Mulher, dar-te uns versos pobres, 
A ti que não verei nunca mais. 
Na lembrança que carrego de ti, olhos, boca 
E também teus cabelos, dourados como
Os planos dos que ainda vivem,
Cantarei secretamente meu solene verso atrasado:
Pois vieste ao mundo, Senhora, e não fui eu quem
                                [te acolheu quando choravas. 
Também não recebi de tua boca a notícia
Do amor, Senhora, dito em tantas ocasiões
                                       [a tantos outros homens.
Mas nada te pediria que não fosse apenas
Os eflúvios da consolação, teu colo paciente
E uma mordida dessa tua fruta, Senhora,
Para o coração machucado de Tempo¹



¹Hilda Hilst.Verso da estrofe IX, contido em Da Noite(1992).



quarta-feira, maio 09, 2012

Cânticos

I.

na arena do meu peito
há uma disputa
entre mim e o próprio eu
batalha não anunciada
pelo meu tempo
ao vencedor os despojos
da delicadeza.

II.

minha boca cinge teu corpo
respiro você tão breve
que será preciso imprimir
em mim tuas digitais
para que te reconheça
em meus labirintos
sentimentais.

III.

há palavras que imploram
para que sejam colocadas
num poema de amor
nem ternura nem desejo
talvez "cinema" ou "compras"
mas certeza que "rotina"
e aquela nomeada "tentativa"

terça-feira, maio 08, 2012

Soneto do Querer Momentâneo

O que queres de mim que já não o tem?
- Queres amor, talvez um resto só 
De atenção; queres meu verso sem dó,
Esperança, dor, paixão a mais ninguém.

Mas vejas tu meu peito virar pó
E o calor escapar-se para além:
Não pode meu desejo ser de alguém 
Cuja a vida a mim se engata feito nó.

Nada contra ti, talvez eu te ame
Pois te quero agora, nesse momento:
Nós podemos pular o sofrimento

Que habita nesse nosso mundo infame.
Basta que nos amemos sem reclame 
Agora, breve - com desejo e intento. 

sábado, maio 05, 2012

Experiência poética N°3 - o poeta cinge o espaço

O poeta é a folha amarelada
dessa vida, árvore ordinária.
Não se desprende dela, posto
que precisa da saliva,
mas também não se lança ao vento
- abandono do tempo.
O poeta sonha:
tão longe é o céu, tão curta é a vida.
E ama:
tão longa a incerteza, tão próximo o peito.

A poesia vem de vias públicas,
de carros bailando no engarrafamento,
de bandeiras flamulando na tarde -
insígnia desbravando o cotidiano.
A poesia vem da visão embaciada,
do amor feito estilhaço
ou do tempo que paira sobre a rotina
das nossas circunstâncias.

Mas o poeta é pedra atirada à revelia.
É poeira rompendo o espaço,
gota de água no marejo dos olhos da
cidade.
O poeta é o desvio do caminho
o atalho perdido que conduz ao relento
dos sentimentos.

Haverá o tempo,
quando a vida for insuportável,
quando o mundo já não servir para os sonhos,
mas apenas para a toante desilusão,
em que o poeta rasgará o verso:

Gritará, a plenos pulmões, todos os verbos
que lembrem as possibilidades de felicidade.
E, no meio da tarde confusa,
Será a voz da calmaria, do amor, da beleza
brincando serena sobre a pele do mundo.