sexta-feira, agosto 01, 2014

O Medo

                                             o medo: dome-o
                                              (Antônio Sodré)

o medo não mora
nos altos píncaros
não mora
o medo
nos abismos
no oceano profundo
o medo não habita

onde quer que estejamos
e onde formos
longe ou perto
dentro ou fora
o medo nos encontra
e se instala
- ai de mim, que existo
e sei!
e permanece o medo
escondido entre entranhas
encostado nas sujas paredes
em que escrevemos nossas vontades

o medo que é.
e está.

e eu, que vivo à margem,
sempre do lado de lá,
espero o medo
(com suas plumas
e bijuterias)
me achar.

quarta-feira, julho 30, 2014

Nocturno n° 5

paira sobre as coisas
e suas cores
(o que não reflete é breu)
uma tristeza que descansa
na noite quase morna
desse inverno:
imóveis árvores,
silêncio dos autos,
céu dissipando estrelas

nonde há luz; sombra -
barroco movimento das vontades.

domingo, julho 27, 2014

Códice

quando Eva me pariu
mal sabia ela
que a dor maior
- a existencial
viria parcelada
pelos séculos
às suas descendentes.

rasguei o ventre de minha primeira mãe
e saí me derramando no mundo
as dores do parto resignaram-na
moça solteira prenhe de filho pardo
o pai não se sabe
alento não tinha

no entanto
como todo acaso
que transforma o mundo
num espetáculo plausível
ao romper a placenta
vazou de súbito
a poesia escondida
jorrou aos montes
encobriu as várzeas
e me afogou num morno
percebimento
da vida ao redor.

quando Eva me pariu
jogou no mundo toda a cor
que era de sangue
e terra
que era verso e sombra

nesse chão agreste
que deus nos deu.

quarta-feira, junho 25, 2014

o poeta anda consigo

sou um homem comum
feito de pele e tédio
pêlos e instatisfação
caminho pelas calçadas
- sempre pulando o ladrilho branco
fumo marlboro
tomo uma gelada
e estou sempre atento ao atravessar as
ruas
pois são perigosos os automóveis
velozes como a cidade

mas acontece que também sou poeta:
devasto a madrugada
que se agasalha na minha pele
a procura de um verso
em que eu caiba
espreito poetas
que aprendi a ler por força
da ocasião
e assovio um bixiga 70
nas horas de ansiedade

como me soubesse gente
desde cedo
e já que descobri
ao vasculhar os meus cabelos
a poesia escondida

não me afeta o cinéreo tempo
que se abate sobre nossa testa
- uma prova de fogo, talvez
antes
na luz em que resisto
colho com as mão lavradas
e o afeto nos olhos
um momento pequeno
como o delicado chilrear
dos pintassilgos.

quarta-feira, junho 04, 2014

I.

se tens, amor, um bacamarte
mira mas não erra.
na cabeça uma sentença:
nas têmporas da temperança
deixe o sangue arbitrário
validar o signo oportuno
no gosto do coração que avança.

se tens, amor, algum punhal
permita-se fincá-lo nos
umbrais da alegria
desses dias em que sorris
como em sonho & possibilidade

II.

mas se nada trazes nas mãos
além dos nós, das falanges tristes
se nada tiveste nas tuas andanças,
na tua alforria

venha assim mesmo: amor
como se nada soubesses de nós
e da morte, do degredo escapaste
como puído o destino das tuas rotas
ou incerto o desejo dos teus gestos...

vens, branda mas ligeira
aplaca o que de mim não se apascenta:
o calor das tardes, o tácito gosto dos meus medos
e acalanta minha insensatez

III.
a respeito da vida conheço os pormenores,
o que fica tangente, espaço de fuga, à deriva no peito
e sei também do que se perde pelos cantos empoeirados,
onde range um sentimento ermo ou delicado.

a respeito de ti, meu corpo sugere a presença:

abismo, ecoando as cores do tempo,

pedindo licença para estar

sujeito às manifestações do ser.

terça-feira, junho 03, 2014

Fragmentos

"(...)
Pois estávamos tristes,
apesar dos sorrisos,

da tua mão na minha
e das flores na sala.

E como havia em tudo
um adeus sem destino,

deixamo-nos ficar
neste sofá florido.

Mas, de súbito, um pássaro,
suspeitando o jardim

com seus grilos e rãs,
trouxe o sonho de volta

do que foi nossa alma,
do que foi nossa carne,

do que foi a desfeita
solidão pelo abraço.

E disseste: — Na pressa
da alegria, retive

o que sei era a morte
no seu próprio casulo.
(...)"

(Alberto da Costa e Silva - Ao lado de Vera)

terça-feira, maio 27, 2014

Madrugada

de madrugada
quando me deito
no escuro do meu silêncio
poemas de variadas formas
vêm aninhar-se a mim

ficamos todos
os poemas e eu
calados esperando
aquecidos, nesse frio
                 [besta que faz em cuiabá
o momento em que surja o dia

quando lá pelas tantas
em que já desponta um sol careca
levanto atrasado
e os poemas
percebo logo
já se foram
cada um para o seu rumo

fazer valer o sonho dos meninos
que não sentem nas costas
o peso do que é o viver

sábado, maio 10, 2014

Pequenas coisas cotidianas

embora já não haja em mim
a disposição existencial
para os adornos da poesia
e mesmo não trazendo na algibeira
                    [o contentamento com a vida
o reflexo do tempo no espelho cotidiano
revela uma face confiante

não sabendo quem sou
mas aberto ao beijo do mistério
posso caminhar
com passo desritmado
sobre a linha do ser-no-espaço

- eu gasto saliva tentando explicar
as cores do dia
os sons das vontades

participo feito bicho
com meus urros e anseios
da repetição do mundo...

...e as palavras, meu deus,
reluzindo o silêncio
das coisas




terça-feira, abril 08, 2014

Os covardes III

era pra te ver voltando
tola diacrônica 
na incipiência dos teus porquês
valendo-se arguta dos pormenores
que ignorei

era pra te ver lugar-comum
depois de tantos anos
eu cresci em você e você
debandando
nosso barco-de-papel
nossa casa e nosso fruir
e depois
logo hoje
era pra te ver

você eu e o fosco céu
na sagração dos nossos pecados
adultos 
barba-na-cara
você tão mulher
decidida-a-ser

chega depois de tantos anos
e tantos copos pra te esquecer e
tantas outras-que-não-eram-você
com esse seu mesmo jeito de sempre

(como eu poderia esquecer?)

e eu escondo o aceno
enterro a mão no bolso
você atende o celular
- parece ocupada, sempre quis parecer
e de canto de boca eu sorrio lembrando
do quanto nós deixamos de amar
covardes como poderíamos ser

você passa. me viu. ignoramos a hipótese
o colo o beijo o grito a hora.

talvez quem sabe no futuro quem sabe nunca.


terça-feira, fevereiro 11, 2014

Fragmentos

"(...)Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...(...)

(Cântico Negro - José Régio)

quinta-feira, janeiro 30, 2014

autorretrato

ouvi na vida: é preciso ter foco
mas eu
que enxergo embaçado
meio míope e quase estrábico
encontro, no borrado das circunstâncias
a matéria da minha poesia

tenho um nome nada grandioso
e ajuntei quinquilharias ao longo dos tempos
não sirvo pro trabalho pesado
criei meu mundo em um dia
descansei
joguei conversa fora
e arrumo minhas tralhas de maneira irregular

- acomete-me dizer que sou gente por acaso

adula a noite meus tortos pensamentos
(sonho com acasos outonos puderas & silêncios)
vou sempre no meu rumo
sem nem ter pra onde ir
e canto às vezes
para um dia colorido

e ouço, sempre:
"é preciso saber o que se quer da vida"
minha carne sente o gosto das palavras
e faz pouco
do que não se pode ser

mas tenho em mim um bicho manso
que galopa, se entrevê
e não deixa meu corpo parar:

- nele eu monto, cela firme
e atravesso campos de intempéries
à procura de remanso.






sábado, janeiro 11, 2014

Os covardes II

eu era garota
no máximo uns 17
- lembra daquele tempo?
eu te esperava encostada no muro da escola
jeans e pose de descolada
fumava meu holly-menta
no máximo 10
pouca grana
- lembra?
e você chegava todo macho
era um moleque
falava de poesia
de como mudaria o mundo com sua arte
e eu esperando só a hora da morte
a gente conspirava
sexo às vezes

(- e aquele papo todo
de amigos e você apaixonado pela
Marcela, por mim tudo bem, não pra você, né?-)

mas éramos covardes
descobrindo-se aos poucos
desengonçados nesse lance
de amor
e você ia embora com Marcela
- justo a Marcela! -
eu pensava
era garota com meus 20 holly-mentas
17 no máximo
covardes e você me deixando

voltando a essa hora
- foi tanto tempo assim? -
pedindo abrigo
querendo arrego
escondendo a solidão
pra quê?
deixando claro o que eu prefiro escuro

-vai!