sábado, outubro 29, 2011

Cerrado

Eu canto com minha voz retorcida
voz de árvores do cerrado
e me espalho pelo chão bioma
deixando rastros de vida
Então me ateio fogo
e viro cinzas
Então me ateio fogo
e me perco em mim mesmo
E o céu me chora
um pranto novo que invade
o corpo
Broto incólume
Eu canto e salivo e deixo escorrer
seiva sonhos
seca e sangue

quarta-feira, outubro 26, 2011

Clandestino

um poema clandestino
pede para ser escrito
sem forma prescrita
sem erudição
um poema clandestino
(sem nome naturalidade
ou data de nascimento)
deseja apenas vir ao papel
e face ao descontente
despejar-se amiúde
um poema clandestino
voz de qualquer lugar
escondido na periferia
da felicidade
reúne-se com seus pares
outros poemas
(sem credo raça ou sexo)
e aprende uma língua diferente
a língua dos poetas clássicos
e chora acende vela
e pensa no dia de amanhã
num subemprego da palavra
com medo da deportação
o poema clandestino
se abriga em muquifos
(sem número gênero ou grau)
e sonha com a família distante
de todas as eras
e distâncias
que despacham poemas clandestinos
se enfiam em fronteiras
e morrem
poemas clandestinos morrem de
saudade
compondo breviários
à vida.

segunda-feira, outubro 24, 2011

Poema debandado

tentei escrever um alegre soneto
que dissesse da beleza da vida
rimei alguns versos de felicidade
mas o poema debandou
num galope torto
lá para longe
para o sertão
fugindo
ao léu
eu

sábado, outubro 22, 2011

Refúgio

Olho para a direita e vejo: não há ninguém que cuide de mim.
Não existe para mim um refúgio,
ninguém que se interesse pela minha vida.
(Salmo 141.5)

o meu peito tem meandros onde se perdem amores e canções
dentro da tarde eterna tarde que faz em mim
percorro e tateio passados e poesias
perdidas ou rasgadas
um sonho qualquer habita a casa abandonada
a velha casa das lembranças
um sonho qualquer é um sem-teto
a vida sem identidade
e o corpo é templo sagrado do espírito de porco
o meu peito tem desvios abismos tem chão rangendo implorando
passos toques e um grito um grito de versos
um grito sem métrica e sem potência ativa transformadora enérgica
ecoa dentro de mim
e eu escuto meus antepassados naufragando em mares
e eu ouço trotes de cavalos
os sem destino mato-adentro
os sem deus branco flechas-afora
e peço para que os poemas que um dia li acendam as luzes
pois ando no escuro
dentro de mim
não há lugar para os que estão fora
não há fora quando não se há muros
não há muros quando o que nos resta é a parca
vontade de se explodir todo
para que a voz alcance o mundo
e haja refúgio no tempo

sábado, outubro 15, 2011

Chuva

a chuva chegava em chiste:
chamava,
se chacoalhava,
chorava
e xingava
cheia de charmes.
A chuva checava
o cheiro de chuva
e chovia.
Aí veio o sol,
abriu espaço no céu,
e acabou
com a consoante palatoalveolar.

sábado, outubro 08, 2011

Poema para você

Você me olha com olhos de esquina:
e eu meio-fio, meio puta, marginal.
Você cala na boca um diz desdizendo.
E eu grito, grito como as sirenes atordoadas
e eu brado: retumbante, retorcido.
Você fecha os ouvidos com grades.
E o que ouço são os alaridos
estampidos da opinião pública.
Você só fede, não cheira.
Você não bate ou afaga
E eu aspirando tuas exalações
E eu precisando das tuas sombras
E eu me equilibrando na corda bamba
                                       [da tua existência.

quarta-feira, outubro 05, 2011

Fragmentos

Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. (...)Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida.

(A Terceira Margem do Rio - Guimarães Rosa)