terça-feira, agosto 31, 2010

Fragmentos.

"(...)Que fizeste com o teu irmão, perguntou, e Caim respondeu com outra pergunta, Era eu o guarda-costas de meu irmão, Mataste-o, Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu daria a vida pela vida dele se tu não tivesses destruído a minha, Quis pôr-te à prova,  E tu quem és para pores à prova o que tu mesmo criaste, Sou o dono soberano de todas as coisas, E de todos os seres, dirás, mas não de mim nem da minha liberdade, Liberdade para matar, Como tu foste livre para deixar que eu matasse a Abel quando estava na tua mão evitá-lo, bastaria que por um momento abandonasses a soberba da infalibilidade que partilhas com todos os outros deuses, bastaria que por um momento fosses realmente misericordioso, que aceitasses a minha oferenda com humildade, só porque não deverias atrever-te a recusá-la, os deuses, e tu como todos os outros, têm deveres para com aqueles a quem dizem ter criado, Esse discurso é sedicioso, É possível que o seja, mas garanto-te que, se eu fosse deus, todos os dias diria Abençoados sejam os que escolheram a sedição porque deles será o reino da terra, Sacrilégio, Será, mas em todo o caso nunca maior que o teu, que permitiste que Abel morresse, Tu é que o mataste, Sim, é verdade, eu fui o braço executor, mas a sentença foi ditada por ti, O sangue que aí está não o fiz verter eu, Caim podia ter escolhido entre o mal e o bem, se escolheu o mal pagará por isso, Tão ladrão é o que vai à vinha como aquele que fica a vigiar o guarda, disse Caim, E esse sangue reclama vingança, insistiu deus, Se é assim, vingar-te-ás ao mesmo tempo de uma morte real e de outra que não chegou a haver, Explica-te, Não gostarás do que vais ouvir, Que isso não te importe, fala, É simples, matei Abel porque não podia matar-te a ti, pela intenção estás morto, Compreendo o que queres dizer, mas a morte está vedada aos deuses, Sim, embora devessem carregar com todos os crimes cometidos em seu nome ou por sua causa, Deus está inocente, tudo seria igual se não existisse, Mas eu, porque matei, poderei ser morto por qualquer pessoa que me encontre (...)"     

Caim - José Saramago

segunda-feira, agosto 23, 2010

Fragmentos.

Âncora, vela
Qual me leva?
Qual me prende?
Mapas e bússola
Sorte e acaso
Quem sabe (?) do que depende?

(Mapas do Acaso - Engenheiros do Hawaii)

sábado, agosto 14, 2010

Importância

Que fique assim:
Que teus olhos não se encontrem nos meus;
Que meus gestos contidos evitem seu toque;
Que meu peito, fortaleza, não seja atacado;
Que fique assim:
Que meu poema se apague na tua língua.
Que meu corpo transmita a dor da vida.
Que tu, somente tu, seja o marco zero.
Que fique assim:
Que de hoje em diante,
Que de sempre e tanto,
Que só seja necessário
Que fique assim.
Que fique.
 

segunda-feira, agosto 09, 2010

Poema inacabado

Nossos corpos
Entrecruzados:
Na encruzilhada
Eu te perdi
Nesse encontro
Entrecortado,
Pergunto teu nome.
Eu te entoquei
No toque não dado.
Qual teu curso
Nesse rio de águas turvas?
Quem é você,
Nesse céu de estrelas mal fadadas?
Eu te procuro nos corpos, nos portos.
Eu te parti.

domingo, agosto 01, 2010

Ao Neruda, amigo desconhecido.

Fostes tu, Neruda, ou fui eu?
Que descompassou a música
Que enterneceu a pedra
Que abismou o céu?
Fostes tu, Neruda,
Que me cantou a poesia.
Fostes tu, Neruda,
Que me acompanhou nos versos.
Fostes tu, Poeta,
que me auxiliou na caminhada do amor.
Fostes tu, Neruda, não fui eu.
Mas fui eu, Neruda,
Fui eu quem me perdi
Fui eu quem rasgou poemas teus
Fui eu, Neruda, quem te odiou.
A ti, amigo desconhecido,
Dedicarei versos tolos e mal construídos.
A ti, tão belo. Tão homem.
Neruda, meu caro, nos perdemos nas palavras.

Eu, mole.

Eu mudo o mundo, o modo
Eu mando o medo à Marte
É mole?
Eu marco, eu meço,
eu mato, eu morro,
É mole?
Eu malho, eu minto
Eu mostro a marca
É mole?
Eu meigo, eu mago
Eu mais ou menos
É mole?

Eu molho o olho
o pranto, eu colho.
Eu, mole.