quarta-feira, dezembro 19, 2012

Last Time I Said...


era um poema mais ou menos assim.
você ia embora
e eu te dizia volta
mas você continuava indo
e não havia cristo que te fizesse
mudar de ideia
você ia sempre, sempre mesmo
alucinada com seus passos trotando
era como um desses puros-sangues
em doses cavalares eu chorava
e dizia volta, marcela
embora seu nome fosse maria
e soluçando eu ficava louco
mas era mentira
você era uma enorme aquarela
que eu pintei nos meus costumes
sim, baby, colori borboletas dentro
de mim
para te dar a impressão
de que estava apaixonado
mas no fim eu só queria mesmo
era fingir um romance
como num poema mais ou menos assim...
mas, relaxa, baby.
O mundo não digere nossa ordem.
Dança sozinha,
Te abriga em você.
Porque, no fim,
Só de ti se lembrarás.

domingo, dezembro 16, 2012

canção para quando chegar o fim

quando chegar o fim do mundo, nêga
te chamo pra uma janta
acendo teu cigarro
beijo tua boca
te compro um anel
depois te despeço
e te mando pra bem longe
quando for a hora de dizer adeus.

quando for a hora de dizer adeus, nêga
direi em sã consciência
mas voz embargada
e de canto de olho
que é pra não sentir saudades
desse tempo pouco
e com jeito morno
que carrego no bolso da camisa
vou indo pra não sei onde.

vou indo pra não sei onde, nêga
mas não te levo não
que a vida é curta pra algum romance
e o mundo é grande pra só nós dois
me deixe a sós com meu pensamento
e vê se te arranja alguma coisa boa
e se preocupe com nossas quinquilharias
que um dia eu volto pra te visitar.

que um dia eu volto pra te visitar, nêga
trazendo nas mãos um pedaço de amor
e a boca cheia de afetos
te levo pra um parque
te mimo e consolo
te digo coisas bonitas
e vê se me aceita
pois beleza a gente não nega,

nêga.

sexta-feira, dezembro 14, 2012

o nascimento da tragédia

o anjo foi um
teste de farmácia
que deu positivo
e a mãe
dava bom dia aos cavalos
quando o guri nasceu
num barraco de pau-a-pique
vieram uns curiosos
ter com o pai
se metendo na vida alheia
querendo impôr costumes
mas o velho tava no seu canto
bebendo um uísque barato
pensando na vida fodida que teria
por causa do nascimento
desse moleque
que chorava o dia inteiro
e dormia noite afora
e vieram os muambeiros
oferecer coisas da china
barganhando promessas
inventando desculpas
beberam todos cerveja barata
oferecendo um pouco ao santo
virando num gole só
em homenagem ao menino
o próprio deus surgiu
-de tanto convidarem!
e também tomou uns goles
e também fumou uns tragos
depois disse que ia comprar cigarro
e sumiu na vida
continuaram enchendo a cara
o resto da noite
e por anos
até a mãe dar no pé
até o pai ser demitido
e  as coisas continuarem
de acordo com a ordem natural
da existência
sempre comemorando o nascimento
desse menino que crescia
e que era santo
mesmo fazendo o diabo
e que era gente
mesmo não tendo registro.

terça-feira, dezembro 11, 2012

Poema irritadiço

Não sou eu quem vai
escrever a última rima
pra você, turista literário
vir tirar foto e fazer pose
de que entende do que eu digo.
Meu verso tem arestas
e tangentes
corta estreito e fere torto
tome tento, sujeito decente
que se te pega essa palavra
faz de ti coisa pouca
faz de ti sujeito comum.
Minha poesia não te pede licença
nem quer te servir de amuleto.
De beleza nem o intento
de erudito só a farsa.

Por isso vou assim, eu com minhas tralhas
e me deixe ser poeta
porque na hora que a coisa apertar
é meu verso livre que te olha na cara
e te dá o beijo de redenção.

sábado, dezembro 08, 2012

Algumas coisas que se perdem quando as notamos

                     Minha mão está suja. Preciso cortá-la.
                                                    (Carlos Drummond)


tenho as mãos sujas
de tinta
de impressões
e o meu papel não é
ser como sequer
ser como talvez fui

as linhas dessas duas mãos
que
por ocasião
formam um par solitário
são feitas de fugas e escapam
tangentes
erosivas
e se ocupam de futuros
apontam
afirmam
impedem
resistem
e são mãos de quem se sabe

tenho dedos nervos e marcas
que identificam minhas mãos
e protocolam
organizam
registram no mundo
em alguma parte da história do universo
relatos de expressões quaisquer
tão íntimas e reais
quanto as possibilidades de tocar o infinito

domingo, dezembro 02, 2012

Samba Cancioneiro

Era só a possibilidade de um sorriso teu
Era a desigualdade do teu corpo, e o meu
Era só um minuto de amor em frases já cansadas,
Em teses rejeitadas, de paixão ou não sei.
Era só “a quem interessar possa”
Era a hora tão triste hora da troça
Era só um minuto de amor em frases enciumadas,
Eu que não repito palavras, se é paixão eu não sei.

É só um desses sambas-cancioneiros,
Há de ser a bossa de estrangeiros,
tocada num Steinway pra você.
É só um termo composto,
Com o posto de gosto,
De mim e você.

Era só a verdade cantada, em firma registrada
Era mentira calada, em fraude magistrada
Era só um segundo de farsa e agora passou,
E o que ficou, não foi paixão.
Era só minha “Coletânea de Canções de Amor”
Era nosso coração que dividiu a dor.
Era só o adeus que partiu e que agora voltou,
E se instalou, só paixão, foi só.

É só um desses sambas-cancioneiros,
Há de ser samba sem pandeiro,
Cantado pra você.
É só um desses sambas-sem-dinheiro,
Feito puro e inteiro,
Só pra você.

domingo, novembro 25, 2012

Para Ver Teu Nome

Como um encantador de serpentes
Toco a flauta do enigma
Para ver teu nome surgir diante dos meus olhos
Vens e, contigo, as cores inauditas
Teus sons se arranjam em minha boca
E pronuncio, também, os silêncios que trazes
                                     [junto aos teus gestos
É o que escondes e que não traduzo
- por paixão e displicência -
Que nos envolve em circunstâncias impronunciáveis.

E logo chega o tempo em que irás num adeus
                                                             [silencioso.
Te aceno - escuro velando nossos perímetros
E me consolo junto ao mar:
Relembro versos amigos
Areia dispersa na ampulheta dos meus tempos
E sinto, marulhando nos meus olhos
As tuas ondas que se encerram em mim.

Mas será tarde, creia, quando,
Enrolada em noite de estrelas,
Apressarás teus passos para suprimir o futuro.
Terei escondido teus significados
Em uma caixa de pandora qualquer
Devotando, assim, à tua sagrada ausência
Algum pequeno, quase breve, suspiro idiossincrático.

quinta-feira, novembro 08, 2012

Shine on you crazy heart

tive um futuro poético incrível
era eu sendo laureado com mil
cabeças todas elas "pensantes"
se estapeando para ser a crítica
(e dinheiro nenhum)
mas o que importa é que eu tive
um futuro poético e até aqueles
programas infames da TV queriam
saber sobre minha arte
mas isso era coisa lá do futuro-
poético-incrível
hoje ando na rua e perguntam
se está tudo bem
respondo
vai ficar pior
ou mesmo "de boa"
talvez não importe mesmo
vou reclamar com um verso alexandrino
meu futuro poético
assegurado na CLT
com holerite e placa na porta do escritório
escrita em letras garrafais
Renan poeta
mas acontece que poesia é acontecimento
e sou só mais um guri jogando bola descalço na rua.

terça-feira, novembro 06, 2012

Meia-tarde

passas com o passar dos anos
os teus pés espaldando a meia-tarde
atravessas minhas pálpebras
cansadas de cessar guerras internas
como um filme sem roteiro
passas e à beira da calçada
eu poderia estar em qualquer outro lugar
e ver romper o som da tarde em suores
mas há nessa meia-tarde teus passos
teu corpo que se move entre prismas rústicos
o chão evidenciando tua passagem
que eu assisto
junto ao agridoce do dia
e penso
num beijo escondido pelo acaso. 

sexta-feira, novembro 02, 2012

Passagem no Tempo IV

o dia rotina sua engrenagem
e vai se colorindo entre limites
num ciclo de matizes
como os verbos todos
que corporam nossos quereres
nuvens indecisas no tempo inventado
até que chega a noite
ocupada de estrelas
um pensamento - cadente -
me atravessa de instantes
tarde já posso sorrir
te ofereço um sonho
e me desmancho no teu colo de organza

quinta-feira, novembro 01, 2012

Ao poeta que não vivi

Não daria tempo, Drummond
- com as mãos vazias
de te encontrar em um
poema.
A gente se perde
em cada vazio de mundo
que, quando nos damos por nós,
já veio o futuro
à galope
trazer um anúncio decodificado
em palavras outras.
E não há mais como,
meu velho Carlos,
te dizer
como um anjo torto que se soubesse infante
um verso de despedida.

quinta-feira, outubro 25, 2012

valsa para uma cena

quando você se perde
quem te procura
senão eu?
e quando você se encontra
e quando você se esconde
e quando você se toca
sou eu por aqui
fazendo sala
festa
drama
& fita.



terça-feira, outubro 23, 2012

passagem no tempo III

ela queria amor
dei-lhe um beijo e três reais
pedi que comprasse
pão com mortadela
e suco de caju

ela insistia
e eu também:
que o troco viesse em balas mentoladas

aí ela foi
e só pude pensar que
em sua ausência
essa fome toda
- que também é desejo
se configuraria em mim
(coração: parede caiada)
como um rude estêncil
que nos leva a refletir sobre algo.

sábado, outubro 20, 2012

o poema que não escrevi

o poema que não escrevi
teria ares de beleza
e falaria de esperança
as gentes todas sorririam
e entoariam cânticos de louvor
às flores que crescem nas cercas
da paciência
seria um salmo um refúgio
seria uma gruta um colo
o poema que não escrevi

viria acompanhado
de um beijo fraterno na boca
do tempo
e uma chance de desejos realizáveis
um sonho exposto na face da
vida
como mãos que se entrelaçam
no abrigo da necessidade

o poema que não escrevi
incitaria uma nova revolução
com armas de papel e gritos
e frêmitos sussurros paixões
num abraço doce de circunstâncias

o poema que não escrevi
eu o sonhei
e já distante de mim
voa com suas asas de palavras
para longe
para as cirandas da lembrança

segunda-feira, outubro 08, 2012

Mundo, mundo

seria preciso apenas
que o mundo abrisse os olhos
e
piscando algumas vezes
ainda sonolento 
dissesse 
"mais um dia mal dormido"
e se levantasse aos poucos
com seus enormes braços de Terra
tão cansado como seus antepassados
com suas velhas pernas gravitacionais
tão antigas quanto andar pra trás
para que 
qualquer coisa mudasse
chacoalhando a ordem natural
dos homens tão máquinas 

bastaria
- veja só
que o mundo dançasse um rock 
pra gente toda que existe
ficar legal
e ensaiar um passo de civilidade


quinta-feira, outubro 04, 2012

Oração

bastante açúcar no fundo do copo
pouco tempo e grandes sonhos
muita coisa no encardido gosto
e muito plano sob o tapete

assim, como se amanhã fosse um dia distante

derrubando dragões com a língua em pranto
escondemos nas mãos um desejo inflamável
que singra e verte e transborda o acaso
até o descontínuo limiar do convívio

assim, como se amanhã fosse um dia e tanto

já disforme um apito final
o colo suado despachando navios
a saudade do lenço tremulando inevitável
rota de encontro no curso dos olhos

assim, como se amanhã fosse um dia qualquer

passo em silêncio pé ante trajeto
e o vento dos modos nos cabelos cansados
abre teus braços e voa pra perto
e ri desse jeito sem ser ilusão

assim, como se amanhã fosse um dia de mim.

sábado, setembro 22, 2012

Retrato Apagado

teu alforje brincando de suor
te conduz pelos meandros da vida
arroios vielas estradas
estás vivo
e resistes, ainda
apesar de todo o medo que a noite veste
e mesmo com toda a gana que lhe cabe nas mãos
as luzes da cidade embaciam teus olhos
já não enxergas como antes
e sobre tua pele há uma ocupação irregular:
vês, gente de si, as dobras do tempo
a ampulheta do labor
as horas bem vividas
(ou mal, o que acusa teu coração?)
de amor e solidão
caminhas, ciente da frieza com que te
tratam teus pares
e carregas, junto ao bolso da calça de tergal
um anúncio de futuro que não pode ser lido
resistes, ainda
que te pese o céu que suporta todo o mundo
e vais sempre adiante
assoviando às estrelas
e contando a tristeza nas nódoas dos dedos
de uma mão que há muito serviu ao teu favor
e que agora limpa teu rosto
cansado
e vivo.

sexta-feira, setembro 07, 2012

Para Ler Fernanda Paz

há uns versos que me deixam
no limiar da dor e do prazer
redentores
padres-nossos
me absolvendo de pecados íntimos
- água-benta num dia de calor
para me livrar dos males
da própria existência

estes versos
por descuido talvez
me cortam a pele
ou se chocam em meus sentidos
deixando hematomas
feridas abertas
ecoando nas possibilidades
da minha poesia tão pobre
e tão mesquinha
para depois se desprenderem
como folhas
(e o descaso dos meus quereres)
e se deixarem ecoar pelos meus
olhos retinas pálpebras e descer
boca murmurando palavras
garganta embargada

repito às rebeldias do sangue
às bebedeiras da vida
ou às lembranças intermitentes
que esses versos me galanteiam
e depois vão embora
como o dia
a tarde que me imprime cores rotineiras
a noite feita de misteriosos desejos
e o grito surdo que escondo
nas palavras que escrevo

e me calo depois
porque é permitido o silêncio
olho o distante
(e não posso falar-te, gesto contido
pela situação)
compreendo tua língua
e tatuo em mim essa coisa
que não se escapa
esses versos que não são meus
esse teu cotidiano
no qual me reconheço
e vivo
e canto
e guardo
como um bilhete bem dobrado
no bolso da camisa que não pretendo tirar.

quinta-feira, setembro 06, 2012

Óculos

                                                 Ao meu pai
 
uso os óculos que
outrora
foram de meu pai.

na armação envelhecida
vejo solenes sinais de
temperança.

Estamos longe,
meu velho,
distantes como a tarde
ensolarada.

Mas agora carrego comigo,
a fim de ver uma nova vida,
teus óculos de armação rude
e considero

Junto a esse objeto estranho,

Que tenho de ti a partida,
vontade de vida nova
e nesses vossos olhos tão
vivos, meu pai,
e com esses óculos tão seus,
espero que o mundo gire a moenda
das renovações

quarta-feira, agosto 29, 2012

Balada

porque sou insistentemente humano
é que te beijo à face
e que cinjo meu ouvido à tua boca
calada
manifestando o estado das coisas
que não se anunciam

por ser tão humano
costuro minha vontade aos seus modos
descalço as luvas da dúvida
e aguardo que fales sem pressa
sobre as cores da solidão

mas não me cantas
e qualquer coisa de ti
está submetida nas palavras
que não dizes
pensas

não são teus
estes versos
por isso os canto
e sonho teus nomes
nas cores embaçadas da
imaginação

nota
vejo ao longe a cavalgada
das ondas
de encontro às encostas

já sei
incerto de mim
onde te guardas da beleza

e segredo um sorriso presto
pois
há em mim
também
a mancha da delicadeza

sexta-feira, agosto 24, 2012

Overture

"o proponente declara
ter conhecimento prévio
da íntegra das condições gerais
em que sua vida 
se encontra
salvo alínea que trata 
dos eventos disformes
tais como sinistros"

mas a apólice assegurada 
me dá a garantia 
de conformar os meus
com a quantia de três mil reais

no entanto devo continuar a existir
(embora me passe pela cabeça
a possibilidade de me atirar ao mar
e ser objeto exercendo sua gravidade
sobre a água, e ser arrastado pelas línguas
das ondas, aos ouvidos da gente toda, meu corpo
embarcação sem muito uso,
passível de naufrágios e fugas)
apesar da pressão do tempo
e das questões que escondemos
nas pálpebras cansadas do mundo
e que nos pesam na hora do sono diário

para depois de muitos anos de contribuição na vida
receber algum dinheiro que te permita descansar
porque as coisas nem sempre são tão fáceis - admitem
e a inflação nos espreita do jardim prestes a entrar
(e a europa, meu deus, que os jornais dizem estar em crise?)

mas não serei poeta em vida para narrar coisas ruins
e peço aos pares que cantem ninharias quaisquer
ou que falem de amor e revolução - quem sabe
para vermos se é possível despertar as pessoas
e depois embalá-las na rede da imaginação
e no final fazer crer que as circunstâncias podem ser amenas

mesmo quando a vontade de se atirar ao mar
e beber tragos de desilusão
e ser um corpo flutuando sobre a rotina da cidade
pareça ser a solução que o tempo propõe.


domingo, agosto 19, 2012

Para Não Esquecer De Adélia Prado


tento decorar as formas geográficas
o movimento das nuvens planos 
rotas e um céu diferente
tenho um tanto de nomes 
guardados comigo 
e os espalho na rotina
sentimentos conceitos anseios 
vou me transfigurando 
nas novas paisagens
corpo mutável 
língua em movimento
morros ruas & barcos
sou feito de desejos
da noite acobreada
brisa beira-mar
misturo meus modos
às condições do dia
sou massa de carne
que se tempera assim
meio poesia
meio cotidiano

e me chamam poeta
(dessa ocorrência só conheço
os intervalos)
no entanto também sou bicho planta gente
gosto de matéria escura 
nos meus recônditos universos
e confluo
consumo
salivas amores tédio 
numa vida ordinária e misteriosa

assim
se não escuto ao longe
o assovio do futuro 
(melodia familiar mas não tão simples)
ou não consigo ler os rabiscos do passado
me aconchego nos ombros do presente
e recito 
silenciosamente
uns versos de Adélia
com fé e paciência



quinta-feira, agosto 16, 2012

recado cotidiano para o camarada Maiakóvski

encontro-te
junto a uma banca
de livros
de um senhor de
olhos bem azuis
e pele castigada pelo tempo

é diferente ver-te
envelhecido pelos anos
e com manchas que não
se apagam
mas tu és o mesmo
e sonho com teus versos
e vivo o quotidiano
mundo contemporâneo

acompanha-me num café
camarada
e olhemos juntos para o
céu de uma tarde de Agosto

depois continuemos
eu cá
poeta por acaso
e tu aí
preso ao papel com  os pregos 
das palavras.¹

¹Frase que ilustra o poema a flauta-vértebra

quarta-feira, agosto 15, 2012

Ave Noturna

te adorno com o tempo
fecundo teu corpo com novos sons
flores baldias cobrem teu ventre
odores impronunciáveis
atravessam as cordas
dos nossos metálicos contrastes
ave noturna
agoura no meu peito
muito te ouço
- e pressinto -
palavras sibilando
os olhos
as luzes
tão distantes quanto
todas as coisas que cobrimos
com as mãos
guardando um segredo
punhos cerrados
garganta imaginando o grito

te envolvo nos braços do mar
e te adormeço
embora seja eu que sonhe
e pense
- sol sobre nossos planos

segunda-feira, agosto 13, 2012

passagem no tempo II

ao viver uma tarde estrangeira
junto aos pombos e prédios
logo a vida se espreguiça
e sai de sua toca
e vai em direção às ribeiras do tempo
para então abrir suas asas
e cair
no vácuo absoluto das circunstâncias
e daí
girar suas hélices tão humanas
e sair
por aí
atravessando sinos de igrejas
badalando o corpo de carne e coragem
assoprando cata-ventos
à maneira de renovações do tempo

a vida surge em mim como um
paralelepípedo solto de alguma rua
desconhecida e amistosa.

sexta-feira, julho 27, 2012

Viagem

Um café fumega a calma do dia
Estamos além
Nas beiradas do mundo
Nas franjas do horizonte
Um café Maria-fumaça
Escorrega pelas minhas ferrovias
Apita:
Fiapos de sol dançando aos meus olhos
São em novas paisagens que penso em ti
E brinco
Caso me suponhas
Montes e serras
Nuvens e neblinas
Saberás que sou eu toda a terra que agrego
Para depois revolver essa paisagem
Num doce movimento de especulações

quarta-feira, julho 25, 2012

Três Poemas De Amor Face Ao Desencontro

Tenho um verso de amor
 Entalado na garganta.
Engulo seco sempre
Que a língua pronuncia
Um sentimento escondido.
Minha vida sinuosa rasga
Campos e nuvens:
São nossos corpos tão separados
Pelo desejo abafado pelo
Desencontro.
Tenho um verso de amor
Em vias de acontecer.

*

Já é noite e você ainda não escuta meus passos
Já um adeus está ensaiado em nossos gestos
Olha – te peço em segredo
Vê como se antecipam minhas palavras
Em direção às suas?
Vou longe quando descubro teus pensamentos
Céleres me convidam para nossa última dança
Mas eu não estou
Parti junto com os resquícios do horizonte
Te vejo ainda, nas árvores e no silvo do vento
É tua face que procuro junto às estrelas e luas
Mas você não está
Tomamos rumos diferentes
Enquanto a vida
Transpunha seus modos
No dia nodoso
E éramos díspares, cúmplices, sós.

*
Quando ouvires minha voz
Saberás que o som ecoa no
Nosso universo
Vácuo em si mesmo e paciente
- Um objeto esquecido sobre o aparador
Dos nossos olhares.

Quando ouvires minha voz
Será como um beijo no tempo que não tivemos.

terça-feira, julho 24, 2012

Partida

Escuto tão próximo o balbuciar da noite
E espero sem demora o desenredar de estrelas
- O céu é grande demais para caber dentro dos meus olhos
Para onde se move o tempo?
No encalço das circunstâncias correm as horas
Com mil bocas te canto a distância
Mil dias esperavam pela minha partida
E sou eu, só, brincando no mistério pueril das mudanças
Parto para uma nova terra
Deixo cá – guardado numa redoma de vontades
Um tanto de desejos e inebriações
Volto – não saberei.
Assim como não posso descobrir o que me guarda a noite
As canções ainda não descobertas
E as estrelas, tão distantes quanto meus próprios
Sentimentos.

sábado, julho 14, 2012

Antropofágico.

comi todos os meus filhos:
devorei-os todos.
as pernas, o colo
o ventre frutífero
tinham todos, os meus filhos, gosto
de imaginação e repugnância.

deglutia meus filhos num misto de
compaixão e terror.
eram em mim a poesia pachorrenta
dos dias quentes
eram em mim a roda da fortuna
o desejo iminente de morte
o cálix bento e redentor
o beijo, tiro de misericórdia,
alumbramento.

meus filhos eram palavras que vingariam.

e eu os vomitava
todos esfacelados
abusados pelo meu fel gramatical.
uma dose de mentira.
um trago de vida.
e caíam, eles caíam
do céu da minha boca
- eram anjos carbonizados
se espalhando como cinza
de cigarro
sobre o papel das circunstâncias.

nunca saciado (embora sempre cheio)
me deitava sobre a amplidão do universo
e contava estrelas forjadas
- poliestireno
esperando adormecer.

meus filhos enzimáticos viveriam de significados.

eu sonharia com os próximos rebentos
e musas.

quinta-feira, julho 05, 2012

Elegia indelicada

vem, meu amor
galopando sobre a madrugada
com tua língua bendizendo
nosso sexo
traga nas mãos nossas armas depostas
espalhe nossos versos pela
claridade da noite
e te apressa pois são vorazes
as bocas do mundo
para devorar-te aos poucos
quando chegares, amor
arrancarei tuas asas
com meus dedos impregnados de eras
e beijarei tuas feridas
até que te cures de ti e de mim
desposaremos a noite fria
e os cães ladrarão à loucura
dos nossos espectros transfigurados
em meio à luz da saudade
partirás, então, amor
e levarás contigo todos os quereres
amarrados em teu cabelo
e já quando amanhecer
interpretarei teus rastros sobre a escuridão
amarei tuas pistas e coordenadas
mas não mais te verei
já perdida pela luz do dia
partirás, amor
mas deixarás teu cheiro claro de alfazema
a lembrança de teu ventre florido
e as sempre-vivas espalhadas sobre nossa cama
de ti não guardarei lembranças
e teu nome será sempre secreto em minha boca
de quando em quando rasgarei minha pele
à procura de ti
ou mesmo vasculharei teus pertences
esquecidos sobre a nódoa do meu tempo
não bastando
deitarei meu ouvido sobre essa terra infértil
e esperarei, amor, teu galope confuso
como a tarde invisível que sorri para nosso
acaso.

sábado, junho 30, 2012

Continuamos vivos, afinal.

continuamos vivos, afinal
o tempo se aninha sobre tua pele
revolve nossos sentidos - folhas caídas
envelhecemos, nos tornamos outros
além de nós mesmos
íntimos da vida
já não sabemos muito bem para onde ir
ou porque, depois de tanta experiência
ainda somos pegos por esse mundo que
                                                [prega peças
e mesmo com tantas rugas
(ações da própria existência que insiste
em nos lembrar que não somos eternos)
e tantos cansaços
e tropeços e entornos
ainda continuamos vivos, afinal
mas chegará o momento em que esse jogo
que nunca termina
que dura anos - uma vida inteira,
por mais breve que seja
chegará o momento em que perderemos
essa roleta-russa com uma arma que sequer engatilhamos
esse revólver cano na boca língua prevendo orações
acionamos o big bang? daremos início a um novo fim
(tantos fins, não se esqueça...
já passamos por tantos fins!)
e aí o tempo se espreguiça
boceja
e vai se enrolar em outro corpo
mas ainda não estamos preparados
acreditamos no amanhã
(nem sempre)
e vamos por aí
vivos, afinal.

quinta-feira, junho 28, 2012

Carta Reflexiva e Ponderada Acerca de Renan Rosenstock - Parte I

Hoje é dia 28 de junho. Eu comecei a escrever cartas sobre mim a partir de 2008. A ideia era simples: nos dias 28 de junho, ou seja, a um mês do meu aniversário, escreveria uma carta sobre mim, acompanharia minha transformação ao longo dos anos, serviria de manequim exposto na vitrine para quem quisesse ver, já que nunca fui muito dado a falar sobre algumas coisas da minha vida (embora isso tenha mudado um tanto). Acontece que fui procurar minhas cartas - para mim mesmo - e não as encontrei. Bateu-me um certo desespero: acho que devo tê-las apagado. Não sei porquê. Fiquei com uma vontade de reinventar o passado e recontar minha "história". Mas isso seria falso demais. Recomeçarei a minha auto-análise e, dessa vez, não pretendo apagar.

Meu nome é Renan Marques Mateus. Achei que esse sobrenome não serviria muito para a arte, então substitui por Renan Rosenstock. Além de ser o sobrenome verdadeiro do Tristan Tzara, um cara que admiro muito (pois foi o criador do dadaísmo), também dá um número legal, numerologicamente (segundo a Allê Rodrigues, grande amiga mística). Antes eu assinava como Renan Marx, mas me deu problemas. Se eu fosse um bom sonetista assinaria como Mateus Marques, à moda portuguesa... mas não fui grande revelação pro mundo.
Completo, no próximo dia 28, 24 anos de idade. Hoje acho possível dizer que "a vida começa agora". Ou que a vida está sempre começando e acabando. Prefiro acreditar que são começos, porque finais cansam demais e depois a gente fica num vácuo. Tenho aproveitado bem esses anos de uns tempos pra cá. Apesar de tanto reclamar (o que eu acho que vem desde muito cedo, porque minha mãe diz que eu chorava demais quando pequeno) e, apesar desse tom meio pessimista que assumo, ainda acredito em algumas coisas. Na verdade, assumi a mesma postura que um cara que vi certa vez, chamado Franketienne, escritor haitiano (não tem nenhuma obra traduzida pro português), que diz que é um "desesperado", porque "esperar" não é uma boa atitude, o negócio é viver e ver qual é. Eu vou chegando aos 24 com um papo meio auto-ajuda, parece, e isso me incomoda. Mas não quero pensar muito sobre isso.
Eu ainda não consegui me formar na faculdade, embora falte apenas uma disciplina. Vou pra 6 anos de curso. Dois anos a mais do que o necessário. Mas não tenho me importado muito, sei que essas coisas acontecem. Foi bom, por um lado, porque esse ano consegui pegar as disciplinas de Filosofia da Linguagem e a de Antropologia da Arte. Eram duas coisas que eu gostaria de ter feito mas não me sobrava tempo. Acho que vou sair "bem formado". Não sei se vou pro mestrado, doutorado, carreira acadêmica. Acho atraente pela questão salarial, mas só. Também penso em começar outra graduação: antropologia. Era o que eu buscava inicialmente, mas não queria ter que fazer ciências sociais.
Trabalho num lugar chamado Centro de Referência em Direitos Humanos. Sou estagiário (imagina só...). Gosto de lá e gosto dessa área. É algo em que eu me especializaria. Também dei algumas aulas particulares, corrigi umas redações e dei aulas num cursinho. Esse ano foi o ano em que mais consegui trabalhar, desde que comecei, lá em 2007. Eu dei algum tempo de aulas e acho que, de certa forma, me encontrei. É bastante interessante preparar aulas, tentar quebrar essa barreira professor-aluno, ver que se interessam quando a gente consegue dar um outro tom pras aulas. Pretendo continuar por aí, sendo chamado de "muito louco" pelos alunos.
Sou leonino com ascendente em capricórnio e lua em aquário. Isso significa: caráter em fogo, aparência em terra e emoção em ar. Isso significa: arrogância, impulsividade, obstinação, firmeza, liberdade, horror à pressão. Tenho um problema meio grave (para a maioria das pessoas): a lua em aquário - nada de pressão, nada de possessividade - e o Vênus em gêmeos: relações fluidas, ninguém é de ninguém, amor tendendo a ser tranquilo e de várias pessoas. Claro que nem sempre foi assim, claro que "cada caso é um caso" (eu me envergonho de ser tão clichê, às vezes), mas tudo caminha para ser. Ando muito mais tranquilo e mais equilibrado emocionalmente. Também ando muito mais desapegado, o que pode gerar certos conflitos. Mas isso é como eu me vejo. Não significa, necessariamente, que seja verdade. Pode ser que eu seja um louco possessivo que faz pressão e que mataria por ciúmes. Será?
Essa junção de signos fez com que eu decidisse, desde muito tempo, não ficar parado em um lugar só. Em menos de um mês estarei indo pra Florianópolis. Nunca me imaginei morando lá. Vai ser uma "aventura" bacana e meio fora dos planos tão concisos feitos ao longo dos anos. Mas não garanto que vou parar por lá a vida toda. Tenho um sentimento meio cigano, eu acho. Mas, por hora, sair de Cuiabá é necessidade. Essa carta será dividida em duas partes. A próxima parte será escrita no dia 28 de Agosto - um mês após o meu aniversário - e aí, longe, conto melhor como é morar fora.
Moro aqui desde sempre. Nasci, inclusive, num hospital que fica relativamente próximo à casa. Eu que sempre gostei de viajar (sei que essa cultura vem dos meus pais, porque todo ano, desde que nasci, íamos/vamos para o Paraná, especificamente Ivaiporã e Apucarana, visitar a família. Meu pai foi o único a vir pra tão longe, inclusive) e ficar há 23 anos morando na mesma casa me deixa bastante cansado. Viajei para alguns lugares, mas nunca saí do Brasil. Um dia, quem sabe. Apesar de tudo, eu gosto dessa casa. Gosto do valor simbólico que ela tem pra mim. Gosto da goiabeira e dos mamoeiros e lembro, com uma nostalgia forte, das plantas que tinham nessa casa: goiabeiras, um pé de romã, tinha orelha-de-elefante, abacateiro, cajueiro. Na varanda eram três sete copas e um pé de hibisco enorme. Meu pai me ensinava a chamar passarinho. Cresci num lugar legal e, se um dia tiver uma casa, espero que ela seja tão cheia de plantas quanto.
Tenho uma boa memória fotográfica. Gosto de detalhes. E de cores e cheiros e sons. Gosto de pouca coisa e não preciso de muito na vida. Preciso dos meus amigos, que estão sempre por aí. Também preciso conhecer lugares novos e gente interessante. Fora isso, as coisas vão se organizando.
Gosto de música. Não sou eclético. Não vou mentir: Escuto raça negra, lindomar castilho, conheço alguns funks e alguns sertanejos música-de-corno, e tal. Acho que muita gente também conhece mas se nega a admitir. Eu separo meu gosto por "pastas de música que eu tenho", que são as coisas que realmente gosto (e aí inclui-se Alcione, Benito di Paula e bandas anarquistas - coisas não muito cults) e outras coisas que ouço por aí, pela rua. Vou da bossa nova, passando pelo jazz e pelo blues até o punk rock. Mas tem coisas que, definitivamente, não ouço. Gosto de tocar violão, apesar de não saber. E gosto da escaleta que eu comprei. Não consigo ficar um dia inteiro sem ouvir música, por exemplo. É uma necessidade. Gosto muito de arte. Muito de poesia e muito de literatura. Acabei de ler Gullar. Gosto muito de filmes. Tem gente que acha que eu sou pseudo-cult. Eu acho que não. Até porque acho meio complicado falar em "pseudo" alguma coisa.
Não sou uma pessoa fácil de lidar. Sou chato pra caramba. Só os amigos me aturam. Não sou muito chegado em muita gente, também. Às vezes, meu mau humor é deprimente. Às vezes, minha babaquice é deprimente.
Também não me acho um cara bonito. São 1,74 e 65kg de pura indolência. Ainda não consegui dinheiro pra fazer todas as tatuagens que quero. Tinha um piercing no nariz, mas tirei, perdi e agora só furando de novo. Tenho alargadores. 10mm. Já pensei em aumentar, mas não sei, não. Meu cabelo está estranho. Fiz um moicano e não ficou legal. Aliás, acho que foi uma mudança bacana. Nunca tinha cortado o cabelo assim. Tirei a barba. Só que continuo com essa cor esquisita. Também continuo com os velhos hábitos nada saudáveis: bebo e fumo. Sou meio da boemia. Meio sem hora pra chegar. Gosto disso, porque meus amigos também são assim.
Estou solteiro há dois anos. Não pretendo namorar de novo tão cedo. Gosto de descobrir gente nova e me encanto fácil por muita gente. Nunca beijei - até agora - nenhuma ariana. Gosto de saber sobre signos, também. Não me vejo casado (mas já pensei, e muito, sobre isso) e nem quero ter filhos - o que, pra muita gente, é um disparate sem tamanho. Eu gosto bastante de crianças. Tenho 3 sobrinhas e 1 sobrinho (e está vindo mais um por aí). Mas não pretendo ter filhos. Não me considero uma pessoa muito "família". Por isso não pretendo namorar. Isso não significa que eu seja cafajeste. As garotas sabem como eu sou. No entanto, gosto muito de mudar de opinião. Então pode ser que isso mude logo (é o Vênus em gêmeos). Ou não.
Não sei se tenho mais alguma coisa pra contar. Então é isso.

- escrito ouvindo: The Cure - The Wish e The Smashing Pumpkins - Mellon Colie e Infinite Sadness "Twilight To Starlight"

quarta-feira, junho 27, 2012

homenagem póstuma esquecida pelo tempo

- morreu como quem dormia
é o que pensava quando me dispunha
a ver os mortos todos que atravessaram
minha existência tão cheia de vida
talvez não seja assim
não sei (ou saberei) como foi exatamente
que morreram todos sequer algum deles
tão solitária é essa morte
tão mesquinhos e egoístas são os que se permitem morrer
eu pensava
mas morre-se como quem dorme
também os bichos
também as plantas do quintal de casa
(o velho cajueiro já roído pelo tempo
a goiabeira que sofria intervenções do vento impune
a sete copas - lembra-se, minha mãe, daquela tempestade de 95, talvez 98, não saberei ao certo, quando a sete copas ameaçou cair involuntariamente sobre nossa casa? - já infestada pelas erva-de-passarinho, que parecem-se conosco, sempre tentando sobreviver, mas também morrendo aos poucos...)
morrem os sonhos
os velhos hábitos conjugados pela maturidade
nossos planos
- todos como quando dormimos
e já não pensamos em nada além do próprio sono
essa quase morte que nos deixa no limiar da própria vida
ambíguos e humanos como não poderíamos deixar de ser
só não morre o mundo
tão castigado e velho
também não morre o cheiro de crisântemo das primeiras horas do sol
nem as pedras tão esquecidas e tão cumpridoras
do seu papel de seres que são o que são
(e nós, o que somos além daquilo que inventamos?)
não morre o medo desse futuro que vem de não sei onde
e passa ligeiro como um boeing 747 voando a mais de mil quilômetros por hora
só nós não passamos
só nós insistimos em ficar e morrer
morrer como quem dorme
na inútil perseverança da vida que não se desintegra com suas perdas.

sábado, junho 23, 2012

Alguma coisa

a coisa anda preta
anda por aí nas sombras
da noite
a coisa tá feia
a coisa anda preta
prêt-à-porter
pegue-e-leve sem razão
pegue leve, que a coisa
não tá boa
anda logo, vê se corre
que tem algo surgindo por aí
e essa coisa
(- é coisa feia)
é muita sujeira
é coisa à-toa
ninguém explica
todo mundo entende
coisa de nada
mas que vem e que leva
que mancha e que mata
que invade e - que coisa!
mas deixa essa coisa de lado
essa coisa de dentro
que põe a gente pra fora
essa coisa tá preta
deixa pra lá.

segunda-feira, junho 18, 2012

Cidade

a cidade cresce com seus prédios
como se fossem cacetes
cada vez maiores
rasgando o céu por onde
passam aviões lotados de gente com pressa
e helicópteros - seja de TV, como urubus
sempre cobrindo qualquer notícia
- seja da polícia, como urubus
sempre prontos a nos acusar de qualquer coisa.

e esses prédios - falos enormes
iluminados e coloridos e com gente
gente esperma dentro dos prédios
(alguém pula do 13°: foi um gozo
desperdiçado em direção ao vazio
da cidade).
esses prédios sufocando as casas
o céu
masturbados por um sol
que nasce e morre não sei pra que lado
mas sempre roçando com as cores
a estrutura fálica dos prédios:
a vida contemporânea.

A cidade é um grande corpo
com seus falos, suas veias, um coração sujo
um pulmão imprestável
pernas entrevadas
cabeça demente
e as pessoas transitam nela
como células
com suas funções
e eu
eu sou um câncer
tratado e em vias de desaparecer.


sábado, junho 16, 2012

We cannot start off the day running overtime.

esperar ônibus
é como transar
com a mesma mulher
mais de uma vez
numa mesma noite:
não, você não quer estar ali.
sua vontade é a de tomar uma cerveja
fumar um cigarro
e não se importar com esse "dia de amanhã"
tão medíocre quanto
as noites que perdemos por aí.

esperar ônibus
é como trepar
contra a vontade
é como estar sempre pronto
e nunca preparado
respirar gente babaca e
engolir a seco
as merdas todas de uma vida
que não vai pra lugar nenhum.

Mas o ônibus chega
(sempre chegará)
e você, dentro dele,
é só mais um cretino
que vai para algum lugar
que não importa.
- uma moça ganha flores
do namorado que a traiu.
Uma idiota qualquer que acredita
em qualquer coisa que lhe digam:
"perdoe os pecados"
"ame o próximo"
"não use drogas"
"não beba demais"

essa é a vida fodida que levamos:
indo sempre pra frente
mesmo que essa frente seja
uma porra infecunda
um gozo fingido
uma possibilidade de participar
de toda a conspiração
do mundo:
dos que erram dos que sofrem dos
que mentem e matam e traem e estupram
e roubam ou riem ou levam
essa coisa sempre à frente.

tomar um ônibus nos faz
perceber como somos uns
insignificantes:
não paguei minhas contas
esqueci o bujão de gás ligado
falta comida na dispensa.

mas vamos sempre
sempre para um lugar desconhecido
tropeçando nas próprias pernas
louvando um copo de cachaça
rendendo graças a um deus mudo.

acreditar na vida
(assim como esperar um ônibus)
é como trepar com qualquer pessoa
esperando não sermos infectados
pela miséria humana
ou sujeira radioativa
ou filhos.

mas meu coração tão humano
- não tão símeo por evolução
se revigora à espreita de um futuro
que não chega.
Logo é manhã e só mais um trago
de conhaque (ou fel) pode
curar a ressaca da vida.

sexta-feira, junho 15, 2012

Minotauro

a vida se mistura
nas tuas mil e uma cores.
o momento escorrega pela tarde
já vai longe
quando nos damos conta
das infinitas possibilidades
do dia.

o sabor dos gestos.

tom das coisas que disfarçamos
ali
nas perplexas indefinições.

A noite que chega tem cheiro
de surpresas:
um poema quer rasgar minha carne.

você se insere no caos,
explosões que saem dos meus olhos opacos
algo como um labirinto
um minotauro implorando para ser descoberto
faminto e desolado pelo tempo
displicente e desmemoriado.

você chega pulando meus muros:

não me protejo.
aceito de bom grado tua paleta
e a vontade de recolorir esse céu.


quinta-feira, junho 14, 2012

Nas ruas.

nas ruas, os jovens se amam.
nas ruas, andam de mãos dadas,
se abraçam, trocam carícias e beijos
esperançosos pelo futuro.
nas ruas, os jovens se matam.
nas ruas, se viciam em crack.
nas ruas são assaltados, baleados,
esfaqueados e morrem esperando socorro.
nas ruas
(e sempre nas ruas)
os jovens tentam atravessá-las
em meio ao tanto de carros, caminhonetes,
ônibus,
os jovens tentam atravessá-las,
saindo de buracos escolas trabalhos medíocres
e são atropelados, ou atropelam
e interrompem o trânsito,
anunciam o caos
e viram estatística de violência urbana.
nas ruas,
quão difíceis são as ruas,
manifestam, pedem, exigem, gritam, revoltam-se.
sempre jovens.
sempre nas ruas.
cada vez mais babacas
entupindo ruas cuspindo clichês vomitando
quaisquer coisas pelas quais ninguém se interessa.
ficam os jovens nessa procissão em círculos
e não sabem que o que os aguarda na próxima esquina
é o grito abafado do medo
as fumaças e o desemprego
nós que não somos jovens apenas continuamos
com nossas vidas difíceis
porque o dia bate à porta
são contas demais a pagar
e dinheiro de menos a receber
apenas continuamos perseguindo o futuro
com um pouco de fé seja no que for
com um pouco de paciência seja com o que for
e com um tanto de vontade de sentar
e esperar que tudo passe, como passam as nuvens
como passa o amor febril
como passam os sonhos, indo pro desconhecido do tempo.




quinta-feira, junho 07, 2012

Cântico de amor em louvor à amada

Ó, minha amada, o que quero em ti é o que não
[se escreve:
Quero teus sonhos e o que em ti me dói
Quero teus medos obscuros, teus desejos sujos,
Quero tuas vontades irrealizáveis, teus planos
[medíocres,
Quero tua pouca inteligência, tua sempre disposição
[para o sexo,
Quero teus bens, tuas dívidas, teus foras,
[mas dentro de ti.

Ó, minha amada, amo-te pelo que nunca serás,
[mesmo que te esforces,
[mesmo quando mentes, quando me odeias,
[quando me apontas teu rijo dedo
[e desafias os astros todos, vociferas, me ameaças,
[ébria, fora de si.

Amo-te, minha amada, quando já cansada
[de não ser ouvida, vens e deita-se no
[meu colo e choras qual criança e, mesmo que te
[afague os cabelos, tu sofres,
[imploras para que eu nunca te abandone,
[pois amanhã é um novo dia e você
[precisa pedir aumento de salário para cuidar dos filhos
[que sonhas um dia em ter.

Amada minha, quando levantares dessa nossa cama de ontem
Peço que me tragas aquele vinho não terminado de sempre
Peço que tragas tua loucura e teu ódio pelo mundo
Peço que acendas meu cigarro e depois me deixes
E vá embora, e não volte nunca mais
Com essa tua coisa que não te move
Com esse teu jeito que não se arranja
Com essa tua insatisfação que te destrói
Com esse teu amor que te invade.

Quer dizer, amor, volte.
Volte em breve, o tempo de um cigarro
Ou de uma garrafa de vinho não terminada de sempre.
Volte para casa trazendo tuas coisas definitivas:
tua vida difícil, teu problema com os psicotrópicos,
teu corpo marcado pelas inúmeras
[tentativas de suicídio
e teu amor, tão simples amor, que me desperta
[e me nina até que eu pegue no sono.



domingo, junho 03, 2012

Corpo em Delito

I.

Teu corpo é um delito
você me delata
eu te deleto
degluto e te loto
com o meu corpo
lápide
corpo lépido

II.

e você me relata
louca a me ligar
de um lugar
qualquer
você me aluga
e eu te alego
que levo a vida leve
aí você me lasca
e eu te leso

III.

mas ai de mim, se você lembrar
das nossas leis
mas ai de ti, se eu ler
tuas entrelinhas
mais ainda nossos corpos
ligeiramente lacrados
nesse liame
de quase luz...



sábado, junho 02, 2012

Dessincronia

chamo-te vento
penumbra
barulho embaixo da escada
chamo-te esquecimento
porque perdi teu nome
vasculho teus pertences
mas tu não estás
e eu te procuro
nos classificados de jornal
nas minhas bebedeiras
nas tardes pacatas
e mesmo nos faróis alucinados
dos carros violentos
não poderia encontrá-la
oco de mim
não poderia encontrá-la
passos em desaviso
escapando dos meus meios
no entanto brotas em mim
qual erva-daninha
qual mato entre minha terra seca
quem te plantou?
com que sol te iluminastes
já que minhas noites imperavam?
insisto em te arrancar
mãos feridas pelo tempo
mas te escondes e
logo as chuvas virão
te fazendo florir em mim.

quarta-feira, maio 23, 2012

Ismália

                                                      à Evelyne

quando enlouqueço
(porque não tenho tempo pra sonhar)
que se dane a lua no céu
ou no mar:
paro de pensar nas coisas
tomo um duplo sem gelo
e vou assistir TV
a vida fica presa na garganta
e por isso fumo um cigarro barato
na tentativa de sufocá-la:
vendo que não adianta
vou dormir - já meio alterada
porque nada nesse mundo anda fácil
e o futuro é uma pedra no meu salto-alto


terça-feira, maio 22, 2012

Retrato Cotidiano

                                                            A Júlio Saraiva
guardo comigo no bolso da calça
alguns poemas impressos de
Júlio Saraiva
leio-os quando a vida anda pesada demais
e disfarço uma lágrima
ao pensar que tenho que seguir em frente
sabe-se lá porquê

carrego também em pensamento
uns versos tristes de Júlio Saraiva
um colo de mulher que não amei
e um pouco de descrença no futuro
que a gente inventa pra conseguir sobreviver

domingo, maio 20, 2012

canção de ninar para o tempo

Dorme, tempo, dorme
Nino o tempo, nana
Sonha, tempo, calma
Que a vida já vai embora

Dorme, nino o tempo
No meu colo, dorme
Tão pequeno e triste
Digo, embalo a hora

Sonha, tempo, calma
Que amanhã já vem
Dorme, tempo, dorme,
Dorme sem demora

Que a manhã, meu bem
Vem com a esperança
Dos que já não tem
Dorme, tempo, dorme
Nino o tempo
Sonha e vou embora
Tão pequeno e triste
Sonhando também.

sexta-feira, maio 11, 2012

Elegia À Senhora.

Não há em ti, Senhora, senão calmaria e parcimônia.
Tua pele já não guarda a festividade da juventude.
Também não há em teus olhares a curiosidade
E a pressa, características das mais novas, 
Que acabam de descobrir sorrisos incastos
                                          [e veleidades todas.
Tua boca, Senhora, plangente e misericordiosa,
Abriga um afeto não dito, receoso e murmurante.
Te aninhas no cansaço do dia e sonhas, talvez,
Com alguma bobagem romântica. 
Mas teu corpo, Senhora, se me permites dizer-lhe,
Recende amor maduro, talvez já colhido tantas vezes
Nos anos em que caminhaste errante pelas sendas
Da vida, pelas bocas de uns homens, pelo sexo 
Marcado e o prazer. 
Quisera, Mulher, dar-te uns versos pobres, 
A ti que não verei nunca mais. 
Na lembrança que carrego de ti, olhos, boca 
E também teus cabelos, dourados como
Os planos dos que ainda vivem,
Cantarei secretamente meu solene verso atrasado:
Pois vieste ao mundo, Senhora, e não fui eu quem
                                [te acolheu quando choravas. 
Também não recebi de tua boca a notícia
Do amor, Senhora, dito em tantas ocasiões
                                       [a tantos outros homens.
Mas nada te pediria que não fosse apenas
Os eflúvios da consolação, teu colo paciente
E uma mordida dessa tua fruta, Senhora,
Para o coração machucado de Tempo¹



¹Hilda Hilst.Verso da estrofe IX, contido em Da Noite(1992).



quarta-feira, maio 09, 2012

Cânticos

I.

na arena do meu peito
há uma disputa
entre mim e o próprio eu
batalha não anunciada
pelo meu tempo
ao vencedor os despojos
da delicadeza.

II.

minha boca cinge teu corpo
respiro você tão breve
que será preciso imprimir
em mim tuas digitais
para que te reconheça
em meus labirintos
sentimentais.

III.

há palavras que imploram
para que sejam colocadas
num poema de amor
nem ternura nem desejo
talvez "cinema" ou "compras"
mas certeza que "rotina"
e aquela nomeada "tentativa"

terça-feira, maio 08, 2012

Soneto do Querer Momentâneo

O que queres de mim que já não o tem?
- Queres amor, talvez um resto só 
De atenção; queres meu verso sem dó,
Esperança, dor, paixão a mais ninguém.

Mas vejas tu meu peito virar pó
E o calor escapar-se para além:
Não pode meu desejo ser de alguém 
Cuja a vida a mim se engata feito nó.

Nada contra ti, talvez eu te ame
Pois te quero agora, nesse momento:
Nós podemos pular o sofrimento

Que habita nesse nosso mundo infame.
Basta que nos amemos sem reclame 
Agora, breve - com desejo e intento. 

sábado, maio 05, 2012

Experiência poética N°3 - o poeta cinge o espaço

O poeta é a folha amarelada
dessa vida, árvore ordinária.
Não se desprende dela, posto
que precisa da saliva,
mas também não se lança ao vento
- abandono do tempo.
O poeta sonha:
tão longe é o céu, tão curta é a vida.
E ama:
tão longa a incerteza, tão próximo o peito.

A poesia vem de vias públicas,
de carros bailando no engarrafamento,
de bandeiras flamulando na tarde -
insígnia desbravando o cotidiano.
A poesia vem da visão embaciada,
do amor feito estilhaço
ou do tempo que paira sobre a rotina
das nossas circunstâncias.

Mas o poeta é pedra atirada à revelia.
É poeira rompendo o espaço,
gota de água no marejo dos olhos da
cidade.
O poeta é o desvio do caminho
o atalho perdido que conduz ao relento
dos sentimentos.

Haverá o tempo,
quando a vida for insuportável,
quando o mundo já não servir para os sonhos,
mas apenas para a toante desilusão,
em que o poeta rasgará o verso:

Gritará, a plenos pulmões, todos os verbos
que lembrem as possibilidades de felicidade.
E, no meio da tarde confusa,
Será a voz da calmaria, do amor, da beleza
brincando serena sobre a pele do mundo.




segunda-feira, abril 30, 2012

Solidão

a solidão é
um mar sem fim
que se alimenta das
lágrimas de minha tristeza
e as ondas me trazem a nostalgia
do tempo em que à beira da praia íamos
de mãos dadas e de corações unidos e no
vento que formava novas dunas
brincamos de poesia
fui rei no castelo
na solidão
no mar sem fim
nas tardes quentes o
sol iluminava teu rosto claro
teu riso desafiador tua loucura que me seduz
teu cheiro ainda me acompanha quando vou beira-mar
ouve a quebra das ondas suplicantes
que te chamam ínfimas de amor
traga novamente esta doçura
dos teus olhos claros
mansos quietos
é solidão
é o mar sem fim
peito que fecha o mar a dor outros barcos
é tristeza sem fim no céu triste
mar que vai e volta
na solidão

domingo, abril 29, 2012

Balada da Saia (ou canção à dança do dia)

Balouçava sugerindo movimentos de cores e ritmos e passava pelo
[pavimento do dia covarde.
Aspectos semelhantes ao céu de outubro,
manequins enciumados, triste poeta cantando elegias:
caberia qualquer coisa naquela farsa, naquela roupa, naquela vida.

A moça vestida que desfilava sua saia, que destilava sua elegância,
que me dera olhares em outrora,
era simples moça sem requisitar vicissitudes poéticas.

A saia dançava soprada pelo vento, que lhe encoubera de ter atenções
necessárias de todas as mulheres.
E, quando vez ou outra, pegava-se olhada por terceiros,
[expunha-se envergonhada no corpo da moça.
Era bailarina moderna, apresentando-se no teatro do dia de primavera.
A platéia – que aplaudiria de pé tal apresentação caso à visse –
[estava ocupada com outras coisas. 
Mas eu, solitário, lhe assistia como fosse um quadro de Da Vinci.
Quisera eu ter aquela moça, para dar-lhe todas as saias do mundo... 

Então, por fim, a saia passou e passou o carnaval
[e a tristeza do dia tomou seu devido lugar. 
A saia distribui beleza no pobre salão de rostos indiferentes. 
A moça retribuiu à saia sua elegância.

sexta-feira, abril 27, 2012

Ode para bem-querer

Chamo teu nome com mil vozes
Oriundas da noite
Mas tu não ouves
- tão grande é a luz dos vossos olhos
Tateio versos e te encontro
Junto à minha vontade:
Memória dos nossos desejos
Escondidos sob o tapete
Das percepções
Te busco nas sendas do tempo
Tu somes pelos vão sinais do amor
É tarde agora e penso nas tuas vindas
Espero que te comovas
Ao meu apelo tão sinuoso quanto tua
Visita aos meus olhares
Fale em ti o meu silêncio
E verás surgir do nosso desencontro
As possibilidades de um amor cadenciado
Sussurrando vozes das nossas eras ainda não vividas

quarta-feira, abril 25, 2012

Minuta em acalanto

A noite vem borrando o que sobrou do dia
e a tarde se vai como tuas palavras vão para
qualquer lugar além dos meus ouvidos
e se perdem no vácuo dos sentidos
para lá do mundo
estamos ali ambos dispostos sobre o medo
a escutar o som de estrelas e questionar os
motivos da próxima revolução
estamos pretensamente vivos
e esperamos o surgir de novas constelações
para que nelas nos identifiquemos
a nossa história não contada
o nosso sonho nunca pensado
é noite e estamos sós
corpos feitos de areia e tempo
grito espúrio na garganta das horas
a esperar que te deites ao meu lado
e que tuas mãos enrubesçam quaisquer
desejos meus de claridade e fé
não há motivo para os que creem
penso eu
mas te permites deitar-se junto a mim
e misturar tua pele teus gestos à terra
e esperar supernovas dentro de nós
cuja vida pulsando sobre a matéria orgânica
nos segreda apenas que
o amor se revela no ocaso das circunstâncias

domingo, abril 22, 2012

Domingo

Levo dentro de mim o cheiro de domingo:
o aroma dos descansos,
do nascer da manhã tênue,
dos jardins indiscretos,
das missas matinais,
da preparação do almoço.
A fragrância dominical 
me acompanha no meu íntimo
e me embala num sonho profundo,
quase misericordioso.
O doce perfume das flores brandas,
no colo do tempo,
se aconchega nos meus sentidos.
Eu canto e caminho a passos largos
e penso naqueles que trabalham.
As rendas de perfumes que adornam
meu disforme cotidiano 
me pedem calma:
logo haverá vida nova 
brincando nas vias circulatórias.

domingo, abril 15, 2012

cantiga de arrebol

devo dizer-te, senhora
que hoje, sem demora
ao acordar abri a janela
para entrar através dela
o sol e a luz do dia

e eu, quem diria
me pus a pensar em ti
no beijo doce que senti
nas juras trocadas
nas vontades saciadas
e no amor que nós vivemos

no entanto, senhora, lembremos
que está um dia nublado
e  que requer certo cuidado
é hoje um dia sem luz
e um dia assim nos conduz
a pensamentos ilusórios
e a fatos notórios
que nunca existirão
ficam na imaginação

de dias que não tem sol
e que invento em cantigas de arrebol

terça-feira, abril 10, 2012

Província

também na província
os tempos são outros
vendedores ambulantes fachadas de lojas
[nuvens sujas carros coloridos música alta
[trânsito parado bancas com frutas hippies
[engraxates gente que vem e que vai sempre
[apressada (um homem lotado de coisas
passa por mim, não o reconheço,
embora saiba
que é um homem
que ganha mal e
que tem muitas contas a pagar.)
só as velhas igrejas permanecem
inalteradas e não disputam com prédios
as alturas
Deus de certo
viria cá admirar a arquitetura
pretensiosa dos edifícios
e seus vidros espelhados
ao melhor modo cosmopolitano
talvez não senhores e senhoras
pois a cidade cresce de um lado pro outro
e cresce pra cima mas
e as gentes crescem pra onde?
as gentes não crescem não
as gentes se enfurnam em roupas quentes
e vão tentar ganhar a vida
seja como for
outras gentes se mudam pra viadutos
são viadutos feitos à mão
por gente também concretada
- olha, o sebastião silva fez violas de cocho!
e o desejo de cores
se confunde com a fumaça
quase preta dos carros
quase homicidas
e o sol tem a cor da estação
looks 
hairs 
70%off  
jeans wear
cabe tudo na cidade
nas ruas tortas da cidade
nos sobes e desces da cidade
na provinciana desordem da cidade

quarta-feira, abril 04, 2012

Amor e outras coisas n° 3

cheguei da rua
entrei em casa
(ainda não haviam me roubado as chaves)
tirei a camisa suada
me dirigi ao banheiro
tomei um banho gelado
(fazia um calor absurdo em cuiabá)
fui para o quarto
de lâmpada apagada
tateei os objetos
dispostos sobre a mesa
(o imposto de luz era alto demais)
deitei em minha cama
com os cabelos molhados
fechei bem os olhos
e antes que pegasse no sono
me pus a pensar na tua ausência
agradeci a deus por você
até que enfim ter sumido
e dormi um sono tranquilo e renovador

terça-feira, abril 03, 2012

Nocturno n° 4

Minha jangada vai sair pro mar
à procura do teu corpo atlântico
no meio da noite
na cara e a coragem
resvalando em teus passos
disfarçados pelas marés das vontades
onda que me devolve à terra
depois me engole os sentidos
e você reaparece
distante me surges
no escuro da minha memória
vens sorrindo
já não tememos a vida
e a Deus do céu vamos agradecer


domingo, abril 01, 2012

Conversa tola dirigida ao Sr.Meursault

Hoje, ao findar da tarde,
O sol se apresentava alaranjado. 
O clima anda pesado, meu caro. 
Seco, como foras, 
E denso, como somos. 
Me pus a pensar nas nossas existências. 
A morte não virá cedo. 
A desimportância do entardecer 
Revelava só mais um dos quaisquer 
Aspectos a que a vida se destina:
A tristeza rósea.
Peço um café e me sento para ver pessoas passando. 
Desconhecidas. 
Percebo qualquer rosto conhecido e saio: 
Não estou para essas gentes. 
O céu escuro, a lua em drágea, estrelas bobas; 
Tudo me delirava.

E tu, indiferente ao meu dia, pensavas apenas no sol.

quinta-feira, março 29, 2012

Miríades

O que tenho de ti,
Senão as miríades de palavras
Não ditas
Que escondo em meus ouvidos?

O que, de ti, no calabouço dos
Meus sentidos,
Está prestes a me salvar?

Onde é que te canto
Nos meus murmúrios,
Com que ar me inflamas,
Eu, fogo,
E logo foge,
Enredando meus modos?

O que sei de ti,
Além das tuas ausências
Tão impregnadas nas minhas falsas procuras?

E com que direito? Virias.
Com que gesto incólume? Me
reconhecerias.
E partirias, tão breve é meu colo.

Não venhas.
Deixa-me com teus vestígios
Que projeto

Na sombra.

No chão do meu pensamento.

quinta-feira, março 22, 2012

Poema para o mundo

Beijo os olhos do mundo.
Acaricio seus frágeis cabelos
Sussurro-lhe pelas costas algumas palavras
                                    [incompreensíveis:
Palavras de quem não se ouve mais a voz:
A voz do mundo que é minha também.
Colo minha face à face do mundo
E a frieza que me corrompe
Só pode me dar um indício:
O mundo tem febre.
À noitinha, quando já se deitaram
Todos aqueles que arrastam o mundo,
Ele se deita em meu colo cansado
E eu o consolo
Com um simples e breve suspiro.

terça-feira, março 20, 2012

Amor e outras coisas n° 2

- Querido, não se esqueça do aluguel
também IPTU, IPVA, água, luz
e o dízimo do senhor Jesus,
além da conta da embratel

- Amada minha, quanta felicidade!
ganhei na loteria!
veja só, quem diria?
vamos até mudar de cidade!

A moça se empolga, faz as malas.

O cara também.

E foge com a amante.

domingo, março 18, 2012

Meu amor, não me encontre

vivo numa cidade potencialmente grande
com menos de um milhão de habitantes
mas não encontro um amor que me console
sequer que me olhe com lascivia ou ternura

ainda bem!

de que me adiantaria um amor
se não poderia dar-lhe de beber
pois falta água?

meu amor talvez não me encontre:
engolido pelas enxurradas
da fernando corrêa em dia de chuva

meu amor talvez não venha
- preso em algum engarrafamento
às quatro da tarde

meu amor caiu em algum buraco
desses que facilmente encontramos
por aí por ruas avenidas e corações.

é tão difícil meu amor me ver!
meu amor anda distraída olhando notícias
absurdas em outdoors.

meu amor está ressabiado
meu amor tem medo que lhe aumentem o IPTU
meu amor não quer adoecer e parar no pronto-socorro

em segredo mando uma carta ao amor
pedindo-lhe que não me encontre
porque viver assim anda difícil
e eu nada posso fazer
além de ter calma e escrever um poema.


quinta-feira, março 15, 2012

À mulher que eu amo.

a mulher que eu amo
acorda cedo
caminha longamente
pega um ônibus lotado
e vai trabalhar numa
loja de auto-peças como
vendedora de válvulas termostáticas

a mulher que eu amo
rala durante oito horas
mas precisa de mais duas
pra voltar pra casa
e no trajeto
carrega um sentimento íntimo
de tristeza e profundo
descontentamento
com o calor que faz
embora seja noite
e com o sonho que tem
embora seja bobo:

a mulher que eu amo
espera chegar em casa
e não encontrar ninguém
tomar um banho de portas abertas
depois comer qualquer besteira
e esticar as pernas no sofá
ouvindo o cd que ela mesma escolheu

mas acontece que
a mulher que eu amo
tem uma vida de merda
além de um pé de manjerona
e uns olhos que nunca me viram.


quarta-feira, março 14, 2012

haikai.

é tão difícil
ganhar algum concurso
penso e desisto

Experiência poética n° 2 - Da utilidade da poesia

a poesia pega senha
enfrenta fila
espera horas para ser atendida
por uma moça excessivamente maquiada
que lhe diz que não há vagas
na vida das pessoas
porque sua utilidade perdeu há tempos
a renovação estilística a qual deveria
ter se adaptado
holerites extratos contratos
- a poesia, meus senhores, a poesia não fala a língua do dinheiro.
Precisa fazer urgentemente um curso técnico em finanças
depois é claro deve se especializar em bancos e dívidas externas
a poesia sai desmantelada
tentando compreender seu lugar no mundo
querendo atenção dos transeuntes cansados
dos dias cansados
da vida cansada
e a poesia passeia em dia útil
por uma via em que quase ninguém trafega
a via dos sonhos
via as coisas como são e como serão
e a poesia se senta num banco da praça central
às três da tarde
e espera que lhe façam companhia
lhe contem causos
ou lhe leiam notícias dum jornal que de poético não tem nada

segunda-feira, março 12, 2012

Amor e outras coisas

Pela janela, uma agradável noite de outono
A lua em seu posto radiante
Ilumina os sonhos da jovem que espera
Um homem (ou talvez mulher) que venha
Lhe amar e salvá-la do tédio da noite enluarada

A jovem suspira - um sinal de cansaço
Uma espera pelo amor
Um aviso: as coisas não vão bem
Mas é uma noite de outono
Propícia e romântica:
As flores do jardim exalam doce perfume
A lua revela formas indefinidas
A paixão é qualquer coisa que espreita,
Na noite, o coração da jovem sonhadora...

Em sua sala quase tudo está de acordo com o amor
(móveis, cores, posições, ares...)
Menos o ventilador
Que apresenta problemas com a tomada e
Vez ou outra enguiça
E o amor, o amor some no
Calor da noite romântica e enluarada
Noite de espera e sonhos.

A jovem suspira - um sinal de cansaço
Uma espera pelo amor
Um aviso: as coisas não vão bem
Precisa mexer na tomada até que o ventilador volte
                      [a funcionar e o amor retorne, desconfiado.

Essa cena se repete tantas e tantas vezes
Que, no fim das contas, é a moça que tem
Um coração enguiçado
Uma vida enguiçada
Que só funciona quando lhe mexem nos problemas.

sexta-feira, março 09, 2012

poema sem título

que sonho você tem?
que mentira você conta?
que música te toca?
onde você mora?

que sonho você conta?
em que mentira você mora?
que música você tem?
onde você toca?

que mentira você sonha?
em que sonho você mora?
que música você conta?
onde você mente?

o que não faz parte da sua vida quando tudo que você precisa é se desintegrar com as situações que te ferem e te inibem de ter uma vida melhor quiçá melhor na verdade porque nunca se sabe ao certo que vida teremos futuramente e apesar disso vamos sempre seguindo rumo a algum lugar um pequeno passo para o homem mas um grande salto um grande salto um grande salto um grande salto

com que direito você me olha com esse sorriso e me perturba com pensamentos que são meus próprios? Afinal, com que intenção você se coloca dessa maneira no mundo e depois, sem me pedir, talvez sem nunca falar, você com que direito, meu deus, com que direito você

é tua razão se é que há
seus modos se é que estão
na sua verdade se é que é sua
coisa se é que eu sei

Por que? 



segunda-feira, março 05, 2012

Adiante

É preciso sempre seguir o adiante
o adiante que vai daqui pra lá
via de mão única
e não se pode nem olhar pra trás
É preciso sempre seguir o adiante
com fé no que virá
adiante como um futuro claro
mesmo sendo escuro o que se encontrar
É preciso seguir o adiante lendo versos
ouvindo vozes e
vendo a vida se embrenhando nos matos
do pensamento
É preciso sempre seguir o adiante
porque o adiante é a única garantia
a lanterna acesa no escuro do mundo
O adiante é uma convenção estabelecida
uma ajuda aos que sofrem dos males
que abatem a existência
O adiante é uma possibilidade de ser
participante dos acontecimentos da natureza
É preciso sempre seguir o adiante
sermos sombras do adiante
alcançá-lo enfim
até apunhalá-lo pelas costas
e esperar distante que ele morra
adiante e solitário

quinta-feira, março 01, 2012

Cristo sem braço

Empoeirado,
em gavetas burocráticas
que pedem socorro, está
o Cristo sem braço.
Abraça o Rio
de Janeiro, Cristo.
“Abre teus braços
e canta esta última esperança”.
Perdido entre processos
e protocolos, está o velho Cristo
de dois mil anos atrás,
já enferrujado
pela displicência
dos homens engravatados
que passam arquivados
em velhos costumes.
Cansado
de mudar o mundo, Cristo.
Piedoso, ora pro nobis.
Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem.

quarta-feira, fevereiro 29, 2012

Poema para ser escrito em uma coluna qualquer

A poesia rompe
a qualidade do ser-coisa:
brota da existência,
do amor
e até das vigas
antinaturais
que sustentam
a arquitetura da vida moderna.

terça-feira, fevereiro 28, 2012

Poema de longe

                                                                    À Wal Amorim

Talvez fosse o caso de estar em uma cidade qualquer,
sob um clima ameno e uma possibilidade de mar,
uma brisa brincando nas mangas da camisa e
uns olhinhos fechados pelos efeitos da calmaria.

Talvez fosse o caso de estar sentado em um banco de praça
                              [defronte às escadarias da igreja,
ou acariciando no íntimo dos sonhos um sentimento de
felicidade quase conquistada:
E viria aos olhos um marulhar de saudade
e uma vontade de escrever aquele poema há muito esquecido.

Talvez seja o caso de uma lembrança cultivada
da vida tão estranha que se modifica à
                                           [revelia dos planos
e um desejo de querer, outro desejo de ser.
E assim se vai, nas incontáveis frases ditas,
a beleza de alguma coisa ainda impronunciável,
porém tão certa quanto as descobertas de um futuro
                                         [que se anuncia em sinais.



segunda-feira, fevereiro 27, 2012

Desconsolo

Eu pinto o tempo feito o diabo
O tempo me caça - gato e sapato
O tempo amargo
O tempo à míngua
Pede um copo, toma um trago
Tem cara de cansaço
Me pede pressa
Me acusa o atraso
E - autocrático - o tempo espera
Tropeça no jeito
Trafega pela promessa
Nunca anunciada
Sequer cumprida
De vida mais fácil
O tempo não dá ponto sem nó
Nem explica o que se passa
Se presume: consola
O tempo se abriga da chuva
O tempo toma o ônibus lotado
O tempo viaja em pé durante
Duas horas até chegar
Ao destino que nunca tem final.

domingo, fevereiro 26, 2012

Nocturno n°3

o hálito da noite sussura
versos escondidos nos objetos
da vida
perdidos entre corre-corres
amores vãos
incertezas
as batidas desonestas
do meu peito
resmungam pras estrelas
a distância que nos pertence
na serenidade do espaço
e na confusão do tempo
algo se desvenda
no escuro das coisas
há um tanto de luz
esperando ser acesa

quinta-feira, fevereiro 16, 2012

Passagem

Me levantei e
lavei o rosto.
Ao me olhar no espelho
compreendi toda a existência humana:
a vida,
no fim das contas,
custa os olhos da cara.

domingo, fevereiro 12, 2012

Poema-retrato


Te entregaste à uma existência
que supunhas que te traria alívio
dos sofrimentos desse mundo.
Te deixaste cair aos pés da vida
e imploraste amor que não tiveras
e, num riso farto e intransigente,
recebeste a resposta hermética:
levanta-te, dizia a vida, e anda
pelas paragens, pelas sarjetas,
atrás de tuas fêmeas, atrás de.
E tu partiste à revelia do.
Colocaste um riso forçado face ao.
E nos bares, na miraculosa bebida
nas proféticas conversas com pobres diabos
no incensário improvisado com a fumaça do cigarro
tropeçaste no amor, que dormia próximo à saída.
Não o reconhecera e até mesmo lhe negaste um copo.
Saíste, bêbado, sem rumo pelas calçadas do mundo
e quando já cansado e faminto,
dormes profundamente
na frieza da solidão.

sábado, fevereiro 11, 2012

Soneto à desconhecida

Quisera eu te escrever algum poema
Sem ritmo, cor, sequer motivo breve
Escrevê-lo, só como quem se inscreve
Nessa vida, cujo o único dilema

É, sobre o amor, saber alguma nota.
Quisera eu te escrever algum verso
Que me trouxesse teu nome disperso
E teus cabelos, clareza remota

De que eram rubros e também a tua boca
Colada à minha, como numa dança
Que me traria a dose de confiança

Nesse mundo cheio de tristeza rouca.
Te dedico um poema, essa coisa pouca
A ti que amei em minha parca lembrança.

quinta-feira, fevereiro 02, 2012

Poema para um peito confuso

Tarde chuvosa:
olhos invólucros:
côncavos. Espelhos indelicados.
Noite embaciada.
Um céu destituído de pretéritos
se apresenta
e me propõe a conformidade
das leis do amor.
E eu, tão humano,
poderia me cobrir com promessas
infundadas,
avançar uns passos pela avenida
General Mello,
alcançar um centro óbvio
calado pela ação do tempo,
um feriado qualquer,
ou talvez um domingo - quem sabe?

Para todos os efeitos
existem as leis e as circunstâncias
que nos colocam em rota
de encontro às palavras,
que se escapam quando nervosos,
quando principiados nas coisas do coração.
Nesses dias quentes de verão,
umidade e mormaço,
sobe-nos à face um sentimento
inconcluso de esperança e destoamento:
Num dia qualquer
ou talvez depois do encontro inesperado
com a situação irrealizável
a qual o amor, soberbo,
não sabe controlar.

Desde que estejamos todos
apropriadamente trajados
à espera do momento incerto
que pode ser hoje, amanhã ou nunca mais,
a mão solene do tempo nos será estendida
por sabe-se lá quem,
- talvez pelo próprio amor, dizem os amantes
- talvez pela vida, dizem os experientes
- talvez pelo mistério da ressurreição, dizem os que creem
(e eu que não creio em nada, o que faço com todo esse tanto de vida?)
e dos dedos, unhas coloridas, articulações e linhas despontará
não a revelação do mundo
mas as possibilidades infinitas
dos acontecimentos nesse peito confuso.

sábado, janeiro 28, 2012

Experiência poética n° 1 - Da polivalência literária

a literatura surge no papel
conduzida num andor
por poetas irreconhecíveis
homeros petrarcas camões
pessoas drummonds bandeiras gullares
todos eles carregando suas funções
suas fomes
e seus medos
assim como eu carrego o século 21
arrasto - na verdade -
os poetas também arrastaram suas vidas
os pés repletos de lama de mundo
ar de mundo nuns pulmõezinhos literários
e sobre o andor a literatura
parca às vezes pra esse mundo escurecido
decadente e solitária
com uma coroa murcha de léxicos
destronada e simbiótica
presa em falta-de-papel
revisões sentimentais
processos administrativos
aceitação da editora
percentual de venda
sentada esperando a hora
em que os papeis todos
de todas as leis regras opressões
serão aprisionados e as letras dispersas
se unirão em novas letras palavras poemas
mas a literatura sonha
e sonha apenas
com as mãos sobre o braço de sua cadeira
e o queixo apoiado nas mãos
(sinto pena dessa triste situação e escrevo uns versos tão desmetrificados que daria para os pombos da praça alencastro para que se transformem eles próprios em mensageiros do fim dos tempos de violência e anunciem a poesia)
a literatura pensa sobre a vida
e o que quer que seja dela
mas logo logo precisa voltar para o trabalho
e ser mãe mulher esposa empregada amiga conselheira
desse mundo incrédulo e teimoso

quinta-feira, janeiro 26, 2012

Tafetá

rios se formam entre tua ausência
barcos partem de portos
corpos partidos
seu tafetá amoroso
quebrantado pelo tempo
indeciso
por entre teus espaços
luzes refletem teus sonhos
um destino em cada olhar
um beijo distante na boca da noite
escuta:
saberá o tempo a sua
concórdia
será o colo o seu soldo
indelével
nas cinzas do amanhã
o halo da tua mais bela lembrança

domingo, janeiro 22, 2012

Quando eu te escrever um poema

Quando eu te escrever um poema
virá composto por versos de esperança
com palavras escolhidas a dedo
para que não vejas minha dissidência da vida.
Quando leres, peço-te encarecidamente
que não julgues um ato de beleza e
nem creias nas palavras dispostas
a enganar os olhos e os sentidos teus.
Quando eu te escrever um poema
será tarde demais para reflexões profundas e
análises elucidativas.
Tampouco terás tempo de decorá-lo para mais tarde,
nas recitações, com emoção fingida
disparar entonações midiáticas.
Quando o teu poema for, enfim, escrito
haverá nos olhos meus um tanto de grito abafado,
e, nas minhas mãos perenes,
um futuro triste em cada linha.
Quando sentires vibrar teu peito resistente
quando calares tua boca murmurando veraneios
quando chorares, ao primeiro silvo disparado pelos algozes
[inveterados que bradam ódio e calamidade
Terás, então, visto toda a dor de uma vida indisposta:
o vento solene e vazio no teu seio abandonado.

sexta-feira, janeiro 20, 2012

Poema indelicado

caia tua casa
e tua casa caiada
te asceta
tua seta em direção
sem saída
cai as coisas da vida
e nela tua meta

pinte tuas asas
com cores desinventadas
e se lance na imprecisão
no abismo dos teus ismos
e espere o próximo passo
não se arrisque no impasse
que te acerta sem direção
caia tua casa mas te peço
- não, nada, que isso passa

terça-feira, janeiro 10, 2012

Adeus, Maria

Partiste, minha vó. E, contigo, partiram as coisas inexplicáveis desse mundo. Partiste, como partiram as luzes de natal que enfeitavam a varanda. Partiste, como as espécies de plantas que habitavam teu jardim da frente, já desolado pelo tempo. Em tua partida também partiu a parca lembrança dos nomes dos netos (quem dirá dos mais contemporâneos?). Com tua partida, a partida do louro e do cão, cujos nomes  me esqueço - mas preservei o medo pelos bichos então misteriosos. Partiste e a roda do chimarrão dissipou-se. Partiste, minha vó, e já não me resta a imagem do teu espectro, quando as luzes da casa estavam para se apagar, segurando cobertas e esperando que todos dormissem, para que houvesse o teu descanso. A tua partida levou também o lenço com que amarravas os cabelos, tão longos cabelos. Partiste, e deixaste a casa vazia. Deixaste a roseira, a água para passarinhos, deixaste teu quintal imenso, teu milharal, deixaste tristeza conosco. Não me despedi de ti, minha vó, como deveria ser. Sequer sofri ou chorei pela sensação de um vazio, um abraço com o qual contávamos sempre, nós, teus netos. Partiste e já não sei pensar como serão as coisas daqui para o futuro. O que me ensinaste, durante tantos anos, foi a obediência à palavra, tua palavra. Tu foste a derradeira, minha vó. E, de ti, saudosamente, me lembrarei sempre da brincadeira de criança:

pinhé, pinhé, pinhé.

domingo, janeiro 08, 2012

dia in

à parte de qualquer circunstância
do princípio sinuoso em que se encontram
as coisas ínfimas
perdidas no todo-invólucro
no nada impreciso da solidão
parto em direção ao vazio cálido
que carinhosamente me envolve
em delírios empertigados
em sonhos inadvertidos
e proclama à boca pequena
serão todos os olhos do mundo
e os ouvidos da vida
solenes ferramentas
para repensar os absurdos
cotidianos
do amor moderno
aviso neon no meu peito citadino
o querer nessas noites de indício-mistério
é feito de medo & esperança