quarta-feira, agosto 29, 2012

Balada

porque sou insistentemente humano
é que te beijo à face
e que cinjo meu ouvido à tua boca
calada
manifestando o estado das coisas
que não se anunciam

por ser tão humano
costuro minha vontade aos seus modos
descalço as luvas da dúvida
e aguardo que fales sem pressa
sobre as cores da solidão

mas não me cantas
e qualquer coisa de ti
está submetida nas palavras
que não dizes
pensas

não são teus
estes versos
por isso os canto
e sonho teus nomes
nas cores embaçadas da
imaginação

nota
vejo ao longe a cavalgada
das ondas
de encontro às encostas

já sei
incerto de mim
onde te guardas da beleza

e segredo um sorriso presto
pois
há em mim
também
a mancha da delicadeza

sexta-feira, agosto 24, 2012

Overture

"o proponente declara
ter conhecimento prévio
da íntegra das condições gerais
em que sua vida 
se encontra
salvo alínea que trata 
dos eventos disformes
tais como sinistros"

mas a apólice assegurada 
me dá a garantia 
de conformar os meus
com a quantia de três mil reais

no entanto devo continuar a existir
(embora me passe pela cabeça
a possibilidade de me atirar ao mar
e ser objeto exercendo sua gravidade
sobre a água, e ser arrastado pelas línguas
das ondas, aos ouvidos da gente toda, meu corpo
embarcação sem muito uso,
passível de naufrágios e fugas)
apesar da pressão do tempo
e das questões que escondemos
nas pálpebras cansadas do mundo
e que nos pesam na hora do sono diário

para depois de muitos anos de contribuição na vida
receber algum dinheiro que te permita descansar
porque as coisas nem sempre são tão fáceis - admitem
e a inflação nos espreita do jardim prestes a entrar
(e a europa, meu deus, que os jornais dizem estar em crise?)

mas não serei poeta em vida para narrar coisas ruins
e peço aos pares que cantem ninharias quaisquer
ou que falem de amor e revolução - quem sabe
para vermos se é possível despertar as pessoas
e depois embalá-las na rede da imaginação
e no final fazer crer que as circunstâncias podem ser amenas

mesmo quando a vontade de se atirar ao mar
e beber tragos de desilusão
e ser um corpo flutuando sobre a rotina da cidade
pareça ser a solução que o tempo propõe.


domingo, agosto 19, 2012

Para Não Esquecer De Adélia Prado


tento decorar as formas geográficas
o movimento das nuvens planos 
rotas e um céu diferente
tenho um tanto de nomes 
guardados comigo 
e os espalho na rotina
sentimentos conceitos anseios 
vou me transfigurando 
nas novas paisagens
corpo mutável 
língua em movimento
morros ruas & barcos
sou feito de desejos
da noite acobreada
brisa beira-mar
misturo meus modos
às condições do dia
sou massa de carne
que se tempera assim
meio poesia
meio cotidiano

e me chamam poeta
(dessa ocorrência só conheço
os intervalos)
no entanto também sou bicho planta gente
gosto de matéria escura 
nos meus recônditos universos
e confluo
consumo
salivas amores tédio 
numa vida ordinária e misteriosa

assim
se não escuto ao longe
o assovio do futuro 
(melodia familiar mas não tão simples)
ou não consigo ler os rabiscos do passado
me aconchego nos ombros do presente
e recito 
silenciosamente
uns versos de Adélia
com fé e paciência



quinta-feira, agosto 16, 2012

recado cotidiano para o camarada Maiakóvski

encontro-te
junto a uma banca
de livros
de um senhor de
olhos bem azuis
e pele castigada pelo tempo

é diferente ver-te
envelhecido pelos anos
e com manchas que não
se apagam
mas tu és o mesmo
e sonho com teus versos
e vivo o quotidiano
mundo contemporâneo

acompanha-me num café
camarada
e olhemos juntos para o
céu de uma tarde de Agosto

depois continuemos
eu cá
poeta por acaso
e tu aí
preso ao papel com  os pregos 
das palavras.¹

¹Frase que ilustra o poema a flauta-vértebra

quarta-feira, agosto 15, 2012

Ave Noturna

te adorno com o tempo
fecundo teu corpo com novos sons
flores baldias cobrem teu ventre
odores impronunciáveis
atravessam as cordas
dos nossos metálicos contrastes
ave noturna
agoura no meu peito
muito te ouço
- e pressinto -
palavras sibilando
os olhos
as luzes
tão distantes quanto
todas as coisas que cobrimos
com as mãos
guardando um segredo
punhos cerrados
garganta imaginando o grito

te envolvo nos braços do mar
e te adormeço
embora seja eu que sonhe
e pense
- sol sobre nossos planos

segunda-feira, agosto 13, 2012

passagem no tempo II

ao viver uma tarde estrangeira
junto aos pombos e prédios
logo a vida se espreguiça
e sai de sua toca
e vai em direção às ribeiras do tempo
para então abrir suas asas
e cair
no vácuo absoluto das circunstâncias
e daí
girar suas hélices tão humanas
e sair
por aí
atravessando sinos de igrejas
badalando o corpo de carne e coragem
assoprando cata-ventos
à maneira de renovações do tempo

a vida surge em mim como um
paralelepípedo solto de alguma rua
desconhecida e amistosa.